São Paulo, sábado, 15 de janeiro de 1994
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Redemoinho

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Em algumas regiões do interior, a advertência é transmitida de geração em geração: "Não se deve falar no diabo, mesmo que não seja a favor. Ele logo aparece!" Depois do vento encanado e dos programas nacionais contra a seca, o diabo é a entidade mais temida pela gente simples que habita os sertões e cerrados do país.
Animal urbano, eu devia ao menos aprender o macete: não mencionar o diabo. Outro dia, nem lembro mais a propósito de que, não falei nele, mas num pseudônimo dele: Mefistófeles.
Para início de conversa, o nome é complicado, metido a erudito, só tem o mérito de produzir o adjetivo também complicado, mas de alguma eficácia: mefistofélico. A frase era: "Tudo pode acontecer" –a frase não é minha, é de Mefistófeles, na negociação com a alma do dr. Fausto.
Ser ou não ser é uma frase banal, um postalista extranumerário a repete mil vezes ao longo da vida e não sabe que está citando Shakespeare. "Tudo pode acontecer" também acontece diariamente no dia-a-dia de qualquer cidadão que nem sabe da existência de Goethe. Mesmo assim, correndo o risco de falar no diabo (Guimarães Rosa tremia quando escrevia a palavra, ainda que ela estivesse dentro de outra, como em "redemoinho"), sou obrigado a repetir a frase e o autor: tudo pode acontecer –o diabo sabe das coisas.
Esse "tudo" que pode acontecer, na minha opinião e na opinião do diabo, é a absolvição de Fernando Collor no chamado tribunal da história. Afinal, o Congresso que investigou seus crimes e decretou o seu afastamento da Presidência da República é o mesmo que está tramando, agora, a dilatação dos prazos para os candidatos deixarem seus cargos na máquina do poder.
Pode parecer exagero da parte do cronista, colocar no mesmo plano os rombos que Collor e sua quadrilha deram na nação e a esperteza politicamente correta dos atuais congressistas. Mas é a mesma coisa, no fundo e no raso: tirar proveito pessoal ou tribal (ou partidário, que dá no mesmo). O assunto merecia melhor crônica, mas fico por aqui. Prometo que amanhã voltarei a falar no diabo, mas em outro contexto e em melhor companhia.

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