São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Os quatro tiros

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

É impressionante como um jornal como a Folha consegue ser, ao mesmo tempo, equilibrado e displicente na cobertura do caso mais importante da semana. Estou falando da morte do sindicalista Oswaldo Cruz Júnior, presidente do Sindicato dos Condutores Rodoviários do ABC até a tarde de 6 de janeiro, quando foi assassinado com quatro tiros. Cruz era o autor de denúncias segundo as quais seu sindicato e outros ligados à CUT poderiam estar financiando campanhas de candidatos do PT –algo proibido por lei.
O mais provável é que esse crime tenha implicações políticas. Por isso, mais do que em outros episódios, cabe à imprensa se equilibrar sobre a montanha de versões, acusações e investigações até que se chegue a uma conclusão final sobre o caso –que já seria complicado se não envolvesse uma candidatura ao Palácio do Planalto, por sinal a mais bem colocada nas pesquisas até agora.
A Folha deu a largada em sua cobertura fazendo bom jornalismo –e deixando de lado a histeria que tomou alguns veículos de imprensa, notadamente a Rede Globo. Pois foi ali, mais do que em qualquer outro lugar, que os quatro tiros contra Cruz foram transformados em plataforma anti-petista. Luiz Inácio Lula da Silva não é, nem de longe, o candidato com que sonha o mais poderoso grupo de comunicação do país para suceder Itamar Franco. As insinuações de que o crime poderia ter o dedo da CUT, seria "queima de arquivo" promovida por petistas ou teria um mandante entre os quadros do PT foram minuciosamente detalhadas pela Rede Globo, viessem de quem viessem. Valeu tudo para atingir Lula.
A Folha preferiu aguardar numa posição de distanciamento crítico. Na quarta-feira, 12 de janeiro, publicou um editorial lamentando que os entornos do caso fizessem prever uma campanha eleitoral "(que) exibirá o mesmo baixo nível da de 1989, quando a desejável discussão de idéias e propostas cedeu lugar à pura difamação e até mesmo a expedientes sórdidos". O editorial continuava: "Para algumas importantes lideranças nacionais, a inevitável suspeita de alguma motivação política para o crime tornou-se, antes mesmo de concluídas as investigações, como que uma verdade inquestionável".
Mas foi nesse mesmo dia que a cobertura da Folha no caso começou a fazer água. Ao centrar demais suas atenções nos desdobramentos políticos do crime, o jornal começou a desdenhar revelações importantes da rotina das investigações, para azar do leitor. Assim, enquanto os outros jornais destacavam a divulgação do laudo do Instituto Médico Legal de Santo André, comprovando que Oswaldo Cruz Júnior recebera quatro tiros pelas costas, a Folha limitou-se a dar a notícia em um único parágrafo, perdido no meio do noticiário do caso.
O jornal evitou, assim, sensacionalizar a divulgação do laudo, como fez "O Estado de S.Paulo", que registrou em sua primeira página: "Delegado diz que laudo prova a execução de Cruz". Mas também não deu nenhuma importância ao documento, até agora uma das evidências mais gritantes de que o crime pode não ter sido mesmo apenas um desentendimento entre sindicalistas.
Os leitores da Folha não puderam conhecer detalhes importantes do laudo, nem ficaram sabendo das opiniões do delegado Nelson Silveira Guimarães, que comanda as investigações, sobre ele. Já que o assunto é o delegado, aliás, sua nomeação para o caso merece alguns comentários.
Até agora, ninguém na imprensa parece ter levado a sério as reclamações do PT quanto ao fato de que Guimarães foi convocado para assumir as investigações. Em dezembro de 1989, na véspera das eleições em que Collor derrotou Lula, foi esse mesmo delegado que ajudou a negociar a rendição dos sequestradores do empresário Abílio Diniz –que foram apresentados à imprensa vestidos com camisetas do PT. Quatro anos depois, ele volta à cena e nenhum órgão de imprensa cuida de preparar um perfil de Guimarães, ou de apurar suas responsabilidades no episódio de 1989. Pior que isso: ele dá uma entrevista à imprensa (na Folha, ela apareceu na edição de quarta-feira, assinada por um repórter da "Folha da Tarde") dizendo que em 89 foi convidado para uma "armação" no final do tal sequestro e não concordou com ela. Ninguém vai atrás do delegado para saber do que é que ele falava.
Outro deslize da Folha ocorreu na sexta-feira. Ao contrário de toda a imprensa, o jornal deixou de noticiar a denúncia de dois partidários de Cruz, que na noite de quarta teriam sofrido um atentado quando atiraram três vezes contra o carro em que eles viajavam. Um "furo" inexplicável para um jornal que entendeu desde o início a importância deste caso, e sabe bem que ele pode não ter terminado naqueles quatro tiros da tarde de 6 de janeiro.
O que aconteceu na Folha é grave, merece providências da Redação –mesmo porque o assunto ainda promete render muito– mas não tira do jornal o mérito de estar fazendo um jornalismo correto na cobertura do assassinato de Cruz. Se, como disse o editorial da Folha , a movimentação em torno deste caso faz antever uma corrida complicada e pouco limpa rumo a Brasília, pelo menos o leitor do jornal pode ficar tranquilo: a Folha erra, toma "furos" mas ainda consegue fazer um jornalismo independente.
Tomara que eu tenha motivos para repetir isto quantas vezes for necessário até o final deste ano.

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