São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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O risco de repetir aberrações do Cruzado

ALOYSIO BIONDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Congresso criou duas comissões para estudarem o falado programa de combate à inflação e seus efeitos sobre os diversos segmentos da sociedade: classes alta, média e baixa, ou empresários e trabalhadores, ou devedores e credores. A cata de informações sobre a tal da nova moeda, juros, emissões de dinheiro, ação do Banco Central e etc., uma das comissões convocou técnicos do Banco Central para explicações na Câmara. Pois o presidente do BC, Pedro Malan, proibiu o comparecimento dos técnicos. Alegação: mesmo que a reunião fosse a portas fechadas, sem acesso da imprensa, algumas informações certamente vazariam –e atenção– poderiam provocar agitação no mercado financeiro.
O incidente foi registrado em quatro linhas, no meio de extenso noticiário sobre o Plano FHC. Merecia destaque imensamente maior, por uma série de motivos. Repete-se o comportamento da equipe econômica, de não prestar determinadas informações, ou mesmo não tomar determinadas providências, para "não assustar o mercado financeiro". Pinóias. Que país de ótários é este, em que os intersses da sociedade chegam a ser colocados de lado para evitar tumultos nos mercados especulativos? Afinal, só vale evitar essas situações se elas prejudicarem toda a economia, toda a sociedade. Mas o que se vê no Brasil é o contrário. Prova provada dessa monstruosidade: a própria venda, ao longo da semana, de títulos do governo, que formam a célebre dívida pública, aos bancos particulares. Como se sabe, houve uma "corrida" às cadernetas de poupança por causa de rendimentos altíssimos ultra-anunciados. Os bancos estavam lotados de dinheiro, não tinham como aplicá-los de uma hora para outra –isto é de forma ultralucrativa em que estão viciados. Os bancos ganhariam menos se ficassem com o dinheiro parado, pois estão pagando correção monetária mais 6% de juros aos investidores das cadernetas. O governo, então, emitiu títulos para os bancos comprarem, recebendo juros logicamente. De 6%, como os bancos pagam aos investidores donos do dinheiro? Não. De 7%? Ora, tolice. De 16%. Sem nenhum esforço, os bancos estão ganhando 10% de juros sobre trilhões de cruzeiros. De quem? Do Tesouro, ora.
Vai ver que isso aí é que é política econômica competente. A equipe despreza uma oportunidade de reduzir os juros gastos pelo Tesouro. Para quê? Ela prefere aumentar impostos dos trabalhadores e classe média.
A recusa de informações ao Congresso, por parte do presidente do Banco Central, é outra demonstração do autoritarismo da equipe. Além disso, reforça dúvidas e suspeitas sobre as partes ainda não divulgadas do Plano FHC. A sociedade tem que estar alerta, as entidades que a representam têm que estar alertas, o Congresso idem –para evitarem "fatos consumados", massacres da classe média e dos trabalhadores, com novas vantagens aos setores milionários e grupos empresariais/sonegadores. Não há mais motivos para confiar na equipe econômica, tão simpática aos poderosos, como comprovado por uma enxurrada de decisões recentes, dissecadas nesta coluna.
O risco de impor o plano existe? Claro. Todas as providências, como a criação do novo indexador e nova moeda podem ser encaminhados à aprovação do Congresso, mas através de Medida Provisória –vale dizer: poderão entrar em vigor para só depois serem discutidas pelo legislativo. Aí, não haverá retorno possível.
Foi assim com planos econômicos anteriores. O próprio Plano Cruzado criava privilégios monstruosos aos grandes grupos, às custas mais uma vez do Tesouro, isto é, de toda a sociedade. O foguetório festivo da época impediu que os brasileiros entendessem que ele tirou trilhões e trilhões de cruzeiros de todos os brasileiros e o colocou nos bolsos de uma minoria minúscula da sociedade. O Cruzado pareceu muito simpático, ao criar a "tablita" e assim reduzir as dívidas da população. Acontece que essa redução de dívidas, de forma monstruosa , insista-se, foi aplicada também a empréstimos gigantescos, de bilhões de dólares, tomados pelos grupos empresariais nos bancos oficiais, Sudene, Sudam etc. para pagamento em 10, 12, 15 anos. O Plano Cruzado praticamente "apagou", da noite para o dia, dívidas de bilhões de dólares –o que explica grande parte dos problemas que muitos bancos oficiais passaram a enfrentar, anos a fio. Além disso, o Cruzado deu vantagens imensas, reduções imensas de impostos às empresas –através inclusive de indecentes níveis do mecanismo de "depreciação acelerada". E, em contrapartida, reteve o Imposto de Renda que (já) havia sido cobrado a mais da classe média e trabalhadores e deveria ser devolvido naquele ano. Em resumo: nunca houve um "Plano Cruzado dos Pobres". Ele era mais concentrador da renda, "dava" mais dinheiro do Tesouro e da sociedade a poucos privilegiados que a própria política econômica da ditadura. A prosperidade efêmera que fez a felicidade do brasileiro foi um acidente, algo que não estava previsto pelos economistas autores do Cruzado, mesmo porque eles estavam defendendo realmente os interesses do setor a que estavam ligados, isto é, à Federação das Indústrias e outras entidades empresariais de São Paulo.
A imbatível economista Maria da Conceição Tavares teme que o Plano FHC seja o "Cruzado dos Ricos". Data vênia, pelos motivos acima, o Plano FHC ameaça ser então o "Cruzado dos Ricos - 2", com distorções também multiplicadas.
Quando é que a sociedade vai entender que ela não é obrigada a aceitar um plano econômico semeador de distorções, idealizado por meia dúzia de economistas? Mais ainda: todos os dias surgem "novidades" mostrando como eram "furados" os diagnósticos da equipe FHC sobre a inflação e há portanto possibilidade de atacá-la sem planos arriscados:
Preços – o ministrto passou nove meses dizendo que só demagogo se preocupava com preços. Que a causa da inflação era o tal déficit público. Agora, vem com bravatas contra certos preços. Ora, os preços dos remédios, por exemplo, subiram todos os meses acima da inflação. Acumularam quase 1.500 pontos percentuais acima da inflação de 2.500% em 93. O ministro está acordando agora? Ou fingindo uma indignação que ele perdeu?
Impostos – a equipe previa crescimento de 18%, ele foi de 26% em 93. Mais US$ 10 milhões. Cadê o rombo?
Aposentadoria – o déficit previsto nos "tempos de Krause/ Haddad/ Eliseu / FHC" era de US$ 5,5 bilhões para 1993. Pois o INSS teve superávit de US$ 2 bilhões, apesar de ter pago despesas não previstas, como mais 2 milhões de aposentadorias "represadas" no governo Collor. Cadê o "rombo"?
E a inflação? Não ameaça explodir se o plano for abandonado? Não. Se a equipe econômica fosse menos autoritária e pretensiosa, teria tido um cuidadozinho elementar. Humildezinha, iria verificar se a inflação de 40% ou mais existe mesmo. Ou melhor, é uma inflação "de agora" ou uma "inflação que passou". Por quê? Porque a grande disparada de preços, inclusive alimentos, é do começo de dezembro –e, como de praxe, só se refletiu nos índices de inflação quatro semanas depois. E mais ainda: agora, os preços agrícolas estão caindo.
O Brasil não precisa de um plano esotérico. Precisa de uma equipe democrática.

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