São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Conflito distributivo e capitalismo selvagem

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O conflito distributivo brasileiro é permanente e abrange todos os níveis da sociedade e do Estado. A dispersão de rendimentos do trabalho, a variedade de formas de acumulação espúria de capital e a proliferação dos "podres poderes" exprimem um tamanho grau de iniquidade que é verdadeiramente difícil de imaginar sua superação a curto prazo.
Hoje está claramente aceita até pelos poderes da República a expressão "ciranda financeira". Mas falta uma, cunhada também nos tempos da ditadura, por alguns intelectuais e pela própria imprensa, que é a expressão "capitalismo selvagem".
A péssima distribuição de rendas no Brasil e a superinflação, que são a manifestação mais gritante desta iniquidade, não podem ser atribuídas, porém, apenas à ação dos oligopólios ou monopólios, que sempre existiram, nem à heterogeneidade da estrutura produtiva que também vem de longe. O atual grau de selvageria de nosso capitalismo deve-se à profunda crise que atravessa a nossa sociedade, expressa na desorganização e na fragmentação de interesses dos vários poderes econômicos e políticos, que passaram a ter um comportamento predatório.
A desintegração social brasileira atual não pode ser apreendida pela imagem dos dois "Brasis", a famosa "Belíndia". Há muito mais "Brasis" sob a face do sol do que a teoria ou a imaginação são capazes de abranger. Nem mesmo o "olhar atravessado" de um Nelson Rodrigues, mais dado à crítica dos costumes do que à crítica social, daria conta, hoje, da profundidade de nossa patologia social e dos conflitos potenciais latentes. A diversidade de situações sociais de poder, de prestígio, de condições de trabalho e de vida –expressa na maior desigualdade de distribuição de renda e de riqueza do mundo capitalista– é de tal natureza que não há qualquer ordem ou modelo de engenharia social conservadores capaz de resolvê-la. Vale dizer, são necessárias reformas profundas no Estado e na sociedade para tornarmo-nos viáveis como nação. O problema é que nunca houve acordo mínimo entre as elites e a sociedade sobre a natureza das reformas.
Enquanto isso, a biodiversidade da nossa "selva social" vem requerendo periodicamente, para não transformar-se num estado permanente de luta aberta e de desespero, um imaginário coletivo que envolva a tolerância e a negociação. O problema é que hoje não basta o famoso pacto das elites. Quando a situação se torna dramática demais e nenhuma negociação global parece possível, é necessário buscar algum ponto de encontro, identificável no território do simbólico ou do sagrado, que vá da redenção ao sentimento de transcendência, como vem ocorrendo agora com a campanmha do Betinho. As lutas recentes passaram por fundos movimentos de massas que tiveram a animá-los um sentimento de "alegria, felicidade e solidariedade" de que foram exemplos a campanha das "Diretas Já" ou a campanha de Lula de 1989.
Sobre a precariedade e o desejo persistente da alegria e da felicidade, a nossa música popular está cheia de versos poéticos que penetram no coração de todos. A memória poética e a esperança na capacidade de transformação da realidade é o que permanece, por cima das diferenças sociais e ideológicas da maioria da população que teima em acreditar que o Brasil é um país viável. "Brasileiro, profissão esperança" e "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima" foram duas das mais belas imagens criadas pela produção cultural deste nosso país.
Dadas as raízes opressoras e autoritárias das elites dominantes brasileiras, que não fizeram senão sofisticar-se, e a violência social dos "mercados" formais e informais, o imaginário do "homem cordial" está hoje desacreditado. Mas ainda está profundamente enraizado na cultura tanto do povo como das classes dominantes o desejo ou a crença em soluções "mágicas" ou simplesmente "moralizadoras" para nossos graves problemas.
Independentemente das conjunturas esta foi uma das maiores dificuldades políticas que tiveram de enfrentar quase todos os presidentes eleitos legitimamente na história do após guerra. As aspirações populares de justiça social mínima, juntam-se sempre demandas contraditórias das elites, acompanhadas de resistências surdas ou explícitas à mudança social. Estas características estruturais têm conduzido sistematicamente a impasses (Vargas, Jango, Jânio e Collor).
Não se trata, como se tem sugerido, de obter alianças majoritárias no Congresso para poder governar ou da capacidade de decisão e coragem dos presidentes. A maioria deles se elegeu com alianças majoritárias dominadas pelas forças conservadoras e no entanto cada vez que tentaram empreender qualquer reforma que ameaçasse o "status quo" ou se viram na impossibilidade de arbitrar os interesses mais pesados, econômicos ou regionais, foram sistematicamente acusados de populismo e levados a um impasse, mesmo quando sua aliança originária tivesse poderosas forças conservadoras e algumas das elites chamadas "morais" e "bem pensantes".
O regime autoritário, apesar de seu aparente poder "inconstratável" também não foi capaz de enfentar as desigualdades, a questão agrária e a educação de base. Apenas conseguiu fazer as reformas conservadoras e operacionais capazes de pôr de acordo, por um período limitado, as frações mais importantes das classes dominantes. Este acordo terminou antes mesmo da crise da dívida externa. Em compensação, a sua gestão "macroeconômica" contraditória, a criação da "ciranda financeira" e o endividamento externo excessivo criaram alguns vícios estruturais no Estado e no mercado pelos quais pagamos até hoje.
O regime autoritário não criou os monopólios (privados ou públicos), os oligopólios, as construtoras, os banqueiros, os especuladores, apenas permitiu que o Estado fosse usado por eles de forma predatória, numa extensão até então desconhecida. Não criou as condições originárias do "capitalismo selvagem", apenas as exarcerbou com a convivência perversa de seus representantes mais poderosos, em decisões secretas nos principais gabinetes e desvãos dos sucessivos governos, sem controle social de qualquer espécie.
A crise do modelo de desenvolvimento e da ideologia do Estado autoritário começou no final da década de 70 e contribuiria em muito para a sua derrocada. Infelizmente a ideologia neoliberal não contribuiu em nada para reformar o Estado e regenerar o setor público na direção dos interesses das grandes massas. No que se refere ao mercado, a idéia da "liberdade" irrestrita da concorrência ilimitada como mecanismo de eficiência, a privatização desordenada, o desmantelamento de empresas estratégicas e dos sistemas de infra-estrutura que abrangem todo o território nacional, estão minando nossas possibilidades de competitividade internacional futura e agravando o desemprego e a injustiça social.
Estamos jogando fora as poucas vantagens sistêmicas que o regime autoritário anterior conseguiu com tanto sacrifício do povo. Estamos liquidando o sistema de planejamento e a burocracia de Estado sem colocar nada no lugar; estamos contribuindo assim para um novo tipo de "capitalismo selvagem" que ultrapassa o herdado de nossas condições históricas. E, o que é pior, pretendem legitimá-lo sob a forma de uma doutrina neoliberal em que foram adotadas radicalmente as teses do livre mercado e confundidas, de boa ou má fé, com o conceito de democracia.
Assim, na crise atual, partidos, organizações patronais, sindicais e burocráticas, empresas e bancos, travam entre si uma luta desordenada, sem qualquer possibilidade de construir um novo pacto hegemônico conservador e muito menos construir um novo projeto nacional. Lutam nos seus "territórios menores" sem quartel, sem ética, sem projeto, numa verdadeira "ciranda política" em que as alianças duram apenas o tempo de uma conjuntura particular. É a guerra de todos contra todos, entrecruzada por alianças parciais e temporárias que não conduzem a nada.
A única novidade política é a persistência de um candidato de extração popular nas intenções de voto de uma parte substancial da população. Contra ele estão começando a articular-se um conjunto de forças poderosas. Como proclamou esta semana, em manchete e com certa ironia, a "Gazeta Mercantil" (11/01/94): "Procura-se um adversário para Lula".

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