São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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A ocasião faz o dono do tesouro de Tróia

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Só um enredo de filme de Indiana Jones chegaria perto. Um tesouro de ouro e prata acumulado por piratas é descoberto por um aventureiro alemão, que o retira do país onde foi descoberto sem dar a parte devida ao governo local. Ele doa o tesouro ao governo ao seu país, que o esconde durante a guerra mais feroz da história para evitar que seja destruído por bombas. Uma potência invasora saqueia o tesouro e o mantém escondido em um museu durante quase cinquenta anos. Agora, finalmente, o lendário tesouro troiano volta a ter seu destino decidido, por uma comissão de burocratas dos governos russo e alemão.
As dezenas de peças de ouro e prata –milhares, se forem contadas todas as contas dos colares– foram descobertas pelo alemão Heinrich Schliemann (1822-1890) na colina de Hissarlik, na Turquia, local da até então mítica Tróia. Schliemann descobriu a cidade que antes era apenas conhecida nos livros pioneiros da literatura ocidental, a Ilíada e a Odisséia, atribuídas ao grego Homero. O alemão o batizou de "tesouro de Príamo", em homenagem ao rei troiano que, segundo Homero, governava a cidade quando ela foi destruída pelos gregos de Agamênon, que teriam encontrado ali dentro de um mítico cavalo de madeira (que nunca foi achado).
Na verdade, as peças que Schliemann desenterrou pertenciam a uma Tróia ainda mais antiga que aquelas normalmente associadas com a guerra homérica. Os arqueólogos que vieram depois do alemão descobriram nove cidades construídas umas sobre as outras na colina. A povoação fica em um local estratégico para dominar a navegação pelo estreito de Dardanelos. Isso fez de Tróia uma espécie de "fortaleza pirata", que cobrava imposto e saqueava os navios que tinham de passar por ali. É por isso que os arqueólogos acreditam que houve bem mais que uma "Guerra de Tróia".
Schiliemann encontrou diademas, contas de colar, cálices, braceletes. Refez os colares e fez sua mulher, Sofia Engastromenos, posar com eles. As peças agora no Museu Pushkin, em Moscou, e antes no Museu de Pré-História e História Antiga de Berlim, foram achadas na altura de Tróia 2, uma cidade com arquitetura imponente que floresceu de 2.500 a 2.200 a.C., na Idade do Bronze.
Durante a Segunda Guerra Mundial os alemães saquearam sistematicamente os tesouros artísticos da parte da Europa que ocuparam. Os soviéticos retribuíram quando tiveram a chance de ocupar a Alemanha. Klaus Goldmann, um curador do museu berlinense, fez um trabalho de detetive durante anos tentando descobrir o paradeiro do tesouro. Entre seus achados está um microfilme feito durante a guerra com a descrição de todas as peças. O museu publicou em dezembro passado um catálogo descrevendo o tesouro.
"Ninguém sabe qual será o resultado da reunião", disse Goldmann em entrevista por telefone à Folha, "por causa da mudança da situação política na Rússia". O avanço eleitoral de nacionalistas compromete negociações para restituir o que eles consideram legítimo butim de guerra. Goldmann espera que os russos façam uma exposição logo com os objetos. Ele tem medo que a máfia russa possa roubá-los.
A comissão dos dois governos deverá se encontrar em março. Goldmann estará com os dedos cruzados. Se não houver uma decisão em março, outra chance será em junho, quando o encontro será entre ministros. O ministro russo de Cultura, Evguêni Sidorov, admitiu ter tocado no tesouro.
Uma vez de posse das peças, técnicas modernas de análise permitirão compará-las com outros achados na região. Sempre existiram dúvidas sobre a autenticidade de parte do tesouro. Schliemann mentiu, por exemplo, ao dizer que sua mulher estava presente quando ele foi encontrado.
O atual líder das novas escavações em Tróia, o arqueólogo Manfred Korfmann, da Universidade de Tuebingen, não liga tanto assim para quem fica com o tesouro. "Nós não somos caçadores de tesouros, somos escavadores", disse ele à Folha. "Essa é uma questão política. Como cientistas, nós estamos interessados em seu valor científico. Ele deve estar acessível aos pesquisadores". A equipe multinacional de Korfmann tem hoje 85 pessoas de dez países, e pesquisa desde 1990 uma área de Tróia dez vezes maior que aquela que Schliemann conheceu.

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