São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Burton é modelo de viajante do séc. 19

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Comércio, ciência, guerra e religião são os principais motivos que impulsionaram os europeus a conhecerem o resto do planeta. Cada momento histórico fabricou o seu figurino de turista, seja um missionário interessado em impor regras a libidinosos polinésios ou um Vasco da Gama bombardeando indianos para comerciar com eles. Boa parte dos viajantes costuma ter apenas um desses motivos para pôr o pé na estrada, no convés do navio ou no lombo de animais tão variados como camelos, cavalos, lhamas ou jegues. Um sujeito que misturou de tudo em suas viagens, um dos modelos do viajante-explorador do século 19, foi o britânico Sir Richard Francis Burton (1821-1890), uma mistura de diplomata, soldado, etnólogo, tradutor e escritor.
Seus relatos de viagens misturavam de tudo, e eram escritos com o mesmo objetivo dos "thrillers" de hoje: prender o leitor com suspense, sensacionalismo. Burton escreveu dois volumes sobre suas peregrinações no interior do Brasil, ainda hoje disponíveis em português em edições da editora Itatiaia. Outra obra de interesse ao brasileiro, bem mais rara, não está disponível no idioma de Camões, um dos ídolos de Burton (ele traduziu "Os Lusíadas" para o inglês). Trata-se de "Letters From the Battle-Fields of Paraguay", de 1870, um curioso e burtoniano relato de uma viagem ao Paraguai durante a Guerra da Tríplice Aliança, que juntou Brasil, Argentina e Uruguai para devastar o país vizinho.
Comentando o livro de Burton relatando sua viagem a Meca e Medina, cidades santas na Arábia, o escritor John Keay, especialista na exploração da Asia, disse que ele "não descobriu nada que Burckhardt já não tivesse descrito em detalhe. Essa falta de novidade Burton compensava ao temperar sua narrativa com pornografia gratuita, digressões eruditas e atos suspeitos de heroísmo –tudo isso que a tornou naturalmente um best-seller". O explorador suíço Johan Ludwig Burckhardt foi o terceiro europeu no começo do século passado a fazer a peregrinação muçulmana e deixou uma enorme narrativa póstuma de sua viagem.
Méritos não faltaram a Burton, porém, nem polêmicas. Ele era um desses sujeitos que se deliciam em atazanar os outros. A biografia recente de Edward Rice (publicada no Brasil em 1991 pela Companhia das Letras) dá claros exemplos da vida de alguém que gostava de falar de assassinatos para chocar convivas de um jantar. Rice lembra que Burton deu origem a biografias tanto laudatórias (uma foi feita pela viúva) como detonantes. Só recentemente as obras são mais objetivas.
Mesmo o filme feito por Bob Rafelson em 1989, exibido no Brasil como "As Montanhas da Lua", tem uma visão parcial do homem. O filme até insinua uma relação homossexual dele com o colega explorador John Hanning Speke (1827-1864), algo que não era muito do gosto de um sujeito que traduziu o "Kama Sutra" e "As Mil e Uma Noites". Os dois tinham posições conflitantes sobre a verdadeira fonte do Nilo, algo meio bizantino na era do satélite Landsat, mas uma polêmica intelectual feroz no século passado. Speke estava certo. A situação foi resolvida de vez pelo escocês David Livingstone (1813-1873), alvo de uma das mais famosas perguntas de um repórter da história. "Dr. Livingstone, eu presumo?", perguntou o jornalista Henry Morton Stanley (1841-1904), do "New York Herald", ao explorador, no meio da Africa.
O detalhismo dos livros de Burton é uma armadilha para atrair leitores de vários tipos, assim como um best-seller tem de agradar secretárias, executivos e donas de casa. No mais culto século 19, o detalhismo inclui detalhes de hidrografia, geologia, economia, entremeado com observações sobre o tempo, as raças ou o tipo de rifle empregado pelos exércitos. Burton se orgulha de seu currículo como militar, embora na verdade esse tenha sido mais acadêmico do que prático em boa parte de sua vida. Escreveu entre outras coisas um livreto sobre exercícios com baioneta. Quando descreve o armamento dos lanceiros da cavalaria brasileira, ele inicia uma rápida digressão sobre qual seria a melhor arma para o soldado a cavalo.
"Letters from the Battle-Fields" (hoje se escreve "battlefields") começa com um ensaio histórico sobre o Paraguai, uma "Esparta pele-vermelha". Depois ele descreve a viagem rio acima até as linhas aliadas, aproveitando para rememorar os combates anteriores nos locais pelos quais passa. Nenhum detalhe é pequeno demais, nenhuma analogia é poupada para tornar o leitor um companheiro de viagem. A velha catedral em Corrientes, por exemplo, "é uma caricatura selvagem do monstro inclinado da toscana Pisa".
Para o brasileiro os detalhes que interessam mais são sobre esse exército expedicionário e seus comandantes que de 1865 a 1870 lutaram para vencer as forças do ditador Solano López. Burton tem opiniões firmes, embora nem sempre baseadas em informações precisas. Ele se baseou em relatos de jornais argentinos da época, que publicavam inverdades que indignariam um tablóide sensacionalista americano ou inglês. Sua descrição da batalha naval de Riachuelo é um exemplo, pois relembra falsas acusações sobre a covardia do comandante brasileiro, Barroso.
Burton elogia sem reservas o "galante" general brasileiro Manuel Osório. Já o comandante em chefe, o Duque de Caxias, mereceria uma corte-marcial por ter deixado López escapar depois de uma batalha. Segundo Burton, o homem que é o patrono do Exército Brasileiro não escaparia de uma condenação se fosse de um exército europeu. Não é o tipo de frase capaz de angariar simpatizantes para uma tradução pela Biblioteca do Exército.(Ricardo Bonalume Neto)

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