São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Jack London trocou sua vida de miséria por viagens e literatura

MARIA ERCILIA
EDITORA-ADJUNTA DO MAIS!

Aos 17 anos Jack London se engajou num navio rumo ao Japão, às ilhas Bonin e ao mar de Bering. Estava dada a partida numa vida curta, mas prodigiosamente acelerada e prolífica. London (1876-1916), nascido em Oakland, Califórnia (EUA), passou boa parte da adolescência escravizado à pior espécie de trabalho operário. Jurou se livrar da pobreza, e o caminho que encontrou foi simplesmente se tornar escritor. Autodidata e devorador feroz de toda espécie de livro que aparecia à sua frente, foi autor de romances que se popularizaram como literatura para adolescentes, como "O Apelo da Selva" e "Caninos Brancos".
A literatura passou longe de ser a primeira escolha de London, que queria ganhar dinheiro a todo custo, e se meteu na corrida do ouro, no Klondike, aos 19 anos, depois de ter sido marinheiro e pirata de ostras. Voltou de mãos abanando, e começou a escrever furiosamente. Era metódico: submetia-se a uma dieta de mil palavras por dia, e tentou de tudo, da balada à história de horror.
O romancista E.L. Doctorow observou certa vez que London foi o primeiro autor de uma "road novel", o primeiro que usou do boxe como assunto de ficção, e o primeiro a utilizar a imprensa para se promover. Provavelmente também foi o primeiro a escrever um texto de fôlego sobre... surfe. Fez uma grande viagem aos mares do Sul em 1907, no veleiro que construiu, o "Snark". Ali foi iniciado no esporte. Uma amostra de seu entusiasmo: "(Você) entra e luta com o mar. Coloca asas nos pés (...); doma as ondas e cavalga em seus ombros como um rei."
Bonito, atlético, descrito como dono de grande carisma, London escreveu obras curiosas, como "Memórias Alcoólicas" (Paulicéia, 1993), um diário de seu relacionamento algo violento com a bebida. No correr desse livro, o álcool vai se corporificando e se tornando um personagem, John Barleycorn (apelido para o álcool).
Outra obra, mais esquisita, é "O Andarilho das Estrelas", livro que dedicou à mãe, e depois renegou. Nele, London descreve outras viagens –baseado no relato de um prisioneiro da penitenciária de San Quentin, de "viagens" por outras vidas. O homem entrava numa auto-hipnose para escapar à tortura, e vivia episódios em outras "encarnações". A história se torna mais estranha pelo fato de London ter sido desde os 18 anos um socialista ferrenho, darwinista, e avesso a todo misticismo. Aliás, era filho ilegítimo de um astrólogo, William Chaney, que jamais o reconheceu, e sua mãe era dada a ocultices.
London quase cobriu a Guerra dos Bôeres. Foi contratado pela Associated Press, que cancelou o contrato, quando ele estava em Londres; aproveitou e escreveu "The People of the Abyss", sobre os desabrigados da cidade.
Jack London fez da miséria aventura, e da necessidade puro romance. Ganhou bem com seus livros a vida inteira, e chegou a a ser o escritor mais bem pago dos EUA. Hoje é mais lido no resto do mundo que nos EUA –na verdade, é o autor americano mais lido do mundo, e por algum motivo, é lidíssimo na Rússia. Sua prosa crua, irregular, mas pujante, conserva um grande encanto –quem leu "Caninos Brancos" na adolescência não esquece mais. Filho da paisagem desolada da crise econômica e do industrialismo, criou um cenário aventureiro e épico; bebeu copiosa e desafiadoramente durante a vigência da lei Seca. Dono de uma saúde de cavalo, acabou roído de doenças incômodas, como pedras nos rins e hemorróidas. Sua morte é até hoje obscura: pode ter sido uremia, infarto, overdose de heroína (que começou a tomar para aliviar as dores que sofria, e não parou mais), ou suicídio. Deixou atrás de si 50 livros, 500 artigos, 200 contos e 19 novelas. Sem ter sido um inventor, foi aquele tipo de homem que escreve por excesso de vitalidade, e não por falta.

Texto Anterior: Burton é modelo de viajante do séc. 19
Próximo Texto: O QUE LER
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.