São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Tudo muda na era do turismo

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Num de seus ensaios mais famosos, Walter Benjamin observa: "A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. 'Quem viaja tem muito que contar', diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair de seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante." ("O Narrador", 1937, trad. de S. P. Rouanet.)
O ensaísta alemão insere esta distinção num ensaio a respeito do ficcionista russo Nikolai Leskóv, após retomar determinadas observações que já havia formulado antes sobre como, a partir, pelo menos, da Primeira Guerra, rompera-se o vínculo fundamental entre a experiência vivida e a capacidade de narrá-la.
Para ele, em resumo, aquilo pelo que os soldados passaram nos campos de batalha contrariava tudo o que os seres humanos aprenderam ancestralmente a contar. O resultado é que os sobreviventes voltavam emudecidos da guerra. Benjamin remetia, além disso, à nítida diferença entre narração e notícia, conforme ela já então se apresentava nos jornais.
Na prática, porém, ele ainda mantinha uma crença residual numa das duas espécies de narração de que fala, isto é, a crônia de viagem. Caso contrário, não teria feito as anotações minuciosas que constituem seu "Diário de Moscou", nem teria escrito seus perceptivos retratos urbanos de Nápoles e Marselha. A curiosidade do viajante transparece também nos seus textos sobre Paris. A visita a uma cidade estrangeira é, se mais nada, pelo menos motivação suficiente para lançar mão da caneta e escrever.
Dentre os descendentes confessos de Benjamin, quem levou a descrença na possibilidade de se experimentar qualquer coisa narrável a todo e qualquer tipo de viagem foi o poeta alemão Hans Magnus Enzensberger, autor inclusive de análises penetrantes sobre essa moderna espécie de não-viagem que é o turismo. Não se pode, contudo, atribuir a Benjamin a pecha de otimista ou ingênuo: ele morreu em 1940, numa época de naiconalismo feroz, cuja grande dificuldade não era percorrer grandes distâncias, mas cruzar fronteiras, sobretudo as mais próximas.
A justaposição do que Benjamin e Enzensberger pensam permite concluir que, por várias razões, a viagem, enquanto fonte de algo que possa ou mereça ser narrado, está morta. E o turismo não passa de uma romaria aos seus múltiplos sepulcros. O turismo não é coisa nova e, enquanto jornada planejada de antemão por terceiros, realizada com relativa segurança e devidamente paga, remonta ao século passado.
Isso deriva, por sua vez, da democratização de uma instituição anterior, o "grande tour", uma viagem de alguns anos, geralmente pela Europa continental, através da qual os jovens aristocratas britânicos complementavam sua educação depois da conclusão dos estudos e antes de assumir as responsabilidades adultas. Esse "grande tour" legou-nos narrativas notáveis e, pelo menos, uma obra-prima ficcional: "Don Juan", o imenso poema narrativo de Lord Byron. O turismo, por seu lado, raramente produz mais que uma série interminável de fotos –e, agora, vídeos– de cujo martírio as visitas tentam declinar, geralmente sem sucesso.
Ao contrário da guerra, no entanto, o turismo não se torna inenarrável devido à novidade emudecedora da experiência, mas simplesmente por causa da redundância, ou seja, todo mundo (leia-se: a classe média) pode realizar ou repetir o mesmo itinerário e, pior ainda, a paisagem urbana é cada vez mais uniforme em todos os cantos do mundo.
Em outras palavras, trate-se de Nova York ou Tóquio, Cairo ou Jerusalém, Moscou ou Nova Délhi, fazer turismo consiste em voar nos mesmos aviões, pegar os mesmos táxis ou ônibus em aeroportos idênticos e dirigir-se aos mesmos Hiltons ou Sheratons para em seguida realizar os mesmos "city-tours", "by day" ou "by night" e, com um verniz de refinamento, visitar os mesmos tesouros artísticos que podem ser vistos conjuntamente e em condições melhores no British Museum ou no Metropolitan. E o progresso tecnológico parece incapaz de levar a uma re-invenção da viagem, já que até mesmo as viagens à lua redundam numa forma caríssima e provavelmente tediosa de turismo, com roteiro planejado e datas marcadas de saída e chegada.
Livros de viagem, contudo, continuam populares. Na sua melhor forma atual eles são, isto sim, relatos jornalísticos com objetivos bem delimitados. O viajante, ou melhor, jornalista, vai para algum lugar como correspondente estrangeiro –não raro de uma revista ou jornal– com o objetivo de cobrir certo assunto ou fazer uma reportagem. "Among the Believers", de V.S. Naipaul, narração de uma visita feita em 1979-80 ao Irã, Paquistão, Indonésia e Malaísia para averiguar "in loco" como funcionavam as sociedades islâmicas, pertence a essa categoria, mas não substitui, naturalmente, estudos especializados que chegam a dispensar a viagem.
Outros exemplos são as reportagens do jornalista polonês Ryszard Kapuscsinski sobre a queda do xá do Irã e do imperador da Etiópia. Quando não se trata de uma reportagem mais ou menos específica, o interesse de tais livros reside menos no lugar visitado do que na arte e na personalidade do visitante que, aliás, para escrevê-los não precisaria sequer ter saído de casa, como já o demonstrou, há dois séculos, Xavier de Maistre em sua "Viagem à Roda de Meu Quarto".
Indiscutivelmente, portanto, as viagens mais interessantes para a leitura são aquelas nas quais se fundem perfeitamente ambos os tipos de que Benjamin falava: aquelas em que à distância geográfica acrescenta-se também a temporal, maximizando-se nelas a diferença em face do nosso próprio mundo. Melhor do que a narrativa de uma visita à Turquia são, digamos, as memórias de um diplomata inglês em Istambul na primeira metade do século 19.
Poucas coisas seriam mais fascinantes do que a história da visita de um azteca ao reino dos Incas (ou vice-versa) antes da conquista. Consciente disso, um sinólogo e historiador como Jonathan Spence refez tanto a viagem de um europeu à China do século 16 em "O Palácio da Memória de Matteo Ricci", quanto o roteiro inverso, de um chinês ao Ocidente, em "The Question of Hu".
Acabaram-se, então, as viagens? Só nos resta o turismo? Mesmo que fosse verdade, não seria tão mau assim. A modernização do planeta tem seu preço e não é razoável pedir à nossa espécie que desista dos antibióticos e das vacinas anti-pólio para perpetuar a variedade da paisagem humana que, de qualquer modo, só alguns poucos eleitos estariam em condições de apreciar. Um dos pressupostos básicos da democracia poderia ser resumido na seguinte fórmula: melhor hambúrguer para muitos do que "haute cuisine" para poucos.
Na realidade, porém, ainda existem viagens –na antiga acepção do termo– a serem feitas. Sucede que quem quiser realizá-las tem que investir mais do que um turista estaria disposto a fazer. Tem que investir, de fato, tanto quanto os antigos viajantes, como um Marco Pólo ou outros, estudando, preparando-se, dispondo-se a dedicar anos a sua jornada, para poder redigir depois um relato digno de leitura. A verdadeira viagem do nosso século, a única que resta, mas que em compensação produziu algumas das melhores narrativas é assunto especializadíssimo. Os viajantes em questão, de Bronislaw Malinovski a Claude Lévi-Strauss, são os antropólogos que realizaram trabalho de campo e escreveram algumas das principais narrativas modernas: "Os Argonautas do Pacífico Ocidental" e "Tristes Trópicos".

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