São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Quando Baedeker guiava o mundo

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Turista é fenômeno mais ou menos recente, calamidade moderna, típica de uma era em que tudo se massificou. Antigamente as pessoas apenas viajavam. E, mais antigamente ainda, nos idos de Heródoto e Marco Pólo, os viajantes se confundiam com os exploradores. A Terra já era redonda, mas a burguesia ainda não havia pisado no convés com seus delírios de grandeza e seu sestro consumista.
O que hoje nos resta foi uma invenção de meados do século passado, incrementada por um sujeito chamado Thomas Cook, o primeiro a sacar que os ingleses adoram três coisas: sol, calor e conforto. Também remontam àquele tempo os primeiros livros para viagem e os primeiros guias turísticos. A diferença? Os de viagem indicam o que devemos ver; os turísticos, o que e onde devemos comprar. O alemão Karl Baedeker (1801-1859) só tinha em mente viajantes quando, em 1839, lançou o seu pioneiro guia, endereçado aos que desejavam conhecer o vale do Reno.
Por volta de 1850, a parisiense Hachette lançara os seus guias azuis e o ingles John Murray conquistara uma parcela ponderável dos turistas britânicos. Havia, de quebra, outro concorrente, também francês e ainda tímido, mas que aos poucos tomaria conta do negócio: a fábrica de pneus dos irmãos Andrè e Edouard Michelin, sediada em Clermont-Ferrand, tema do primeiro "Guide Michelin", editado em 1900. Mas a todos Baedeker pôs pra escanteio, e nenhum deles inspirou comparações literárias nem pegou carona em poemas e letras de canções.
Sério. Num dos números da comédia musical "La Vie Parisienne", A.P. Herbert enfiou a seguinte estrofe: "Reis e governos podem errar/ Mas o sr. Baedeker jamais". O aludido senhor já não era o Karl original, mas seu filho Fritz. Pouco importa: o controle de qualidade permaneceu o mesmo.
Com ênfase no que há para se ver e aprender longe de casa, os guias Baedeker estabeleceram um padrão de confiabilidade sem dúvida derivado da maneira singular como eram confeccionados. Karl Baedeker via e avaliava tudo –lugares, paisagens, hotéis, restaurantes, museus etc. –pessoalmente. Para evitar tratamentos especiais, viajava incógnito, ocultando-se sob pseudônimos como Mueller e Bruncker. Era tal seu zelo pela informação correta que um amigo o surpreendeu conferindo o número de degraus que levam ao domo da catedral de Milão com a ajuda de um punhado de ervilhas. A cada cinco degraus, Karl tirava uma ervilha do bolso direito do casaco e a depositava no bolso esquerdo.
Seus textos, enxutos, inteligentes, precisos e repassados de ironia, nem traduzidos perdiam essas virtudes, o que levou um "expert" em livros de viagem, Paul Fussell, a considerar Karl Baedeker "um prosador mais talentoso que a maioria dos escritores vitorianos". Bertrand Russell talvez concordasse com essa observação, pois de uma feita revelou ter dois modelos estilísticos: a prosa de seu patrício John Milton, autor de "Paraíso Perdido", e a "linguagem econômica" de Baedeker.
Claro que, ao menos uma vez, Baedeker errou. Quem garante é Mark Twain. Viajante contumaz, Twain resolveu escalar o Rigi-Kulm, ponto culminante de um grupo de montanhas perto do lago de Lucerna (Suíça). De acordo com o seu Baedeker, em três horas e meia qualquer alpinista amador daria conta do recado. Twain levou três dias. Furioso, despachou uma carta de protesto para Coblenz, mas, ao que parece, morreu sem receber resposta.
Quando de sua conveniência, Baedeker –e este hábito ele passou para os herdeiros –encomendava artigos a especialistas de indubitável competência. Ao historiador clássico Theodore Mommsen pediu um artigo sobre as cidades fundadas pelos romanos por toda a Europa. Graças a um prestigioso egiptólogo de Leipzig, Georg Steinhoff, seu neto conseguiu fazer de seu guia do Egito, publicado pela primeira vez em 1929, o que muitos consideram a obra-prima da coleção Baedeker: 676 paginas de texto compacto, 106 mapas desenhados com esmero e 66 ilustrações.
T.E. Lawrence, o Lawrence da Arábia, na certa destacaria o que, no início do século, cobria a Palestina e a Síria. Não o tirava de sua mochila quando, ainda estudante de arqueologia, estudava os velhos castelos deixados pelas cruzadas. "Só Baedeker escreveu sobre eles", anotou em seu diário.
Impecáveis eram, sobretudo, os seus mapas. "Parecem feitos de espiões para espiões", alguém comentou –e na certa foi ouvido pelo alto comando nazista, que se fiou nos guias dos países nórdicos confeccionados por Baedeker para a bem-sucedida invasão da Noruega, em abril de 1940. Também foi num mapa especialmente desenhado para um guia Baedeker que a prefeitura de Oran (Argélia) se inspirou para fazer o seu. A primeira planta do cemitério Pére-Lachaise, de Paris, repouso eterno de personalidades do mundo inteiro, foi desenhada de encomenda pela familia Baedeker.
Minada por uma sucessão de revezes –o bombardeio de Leipzig pela força aérea britânica em 1943, o aprimoramento dos guias Michelin, a voga do turismo de massa, mais bem atendido pelos guias Fodor e Fielding–, a dinastia Baedeker acabou perdendo o boeing da história.
-Desde 1956 estabelecida em Freiburg, especializou-se em guias para viajantes motorizados, estradeiros. Mas seus velhos tomos continuam sendo disputados como autênticas relíquias. O volume sobre a Rússia, por exemplo, apesar de escrito três anos antes da revolução soviética, continua utilíssimo, segundo Harrison Salisbury, que de Rússia entende paca.

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