São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Prioridades nacionais e participação popular

ADIB D. JATENE
A notícia, de surto epidêmico de difteria na Rússia, passou desapercebida. Na verdade tem implicações mais profundas –até político-filosóficas, como procurarei demonstrar– que um simples acidente epidemiológico.
Difteria é doença infecto-contagiosa prevenível por vacinação. Até a década de 50, o Hospital Emílio Ribas era ocupado, em boa parte, por vítimas desse mal. Tantos eram os casos que um dos médicos do então Instituto de Cardiologia do Estado, hoje Dante Pazzanese, realizou estudo sobre cardiopatia diftérica e o apresentou ao Congresso Brasileiro de Cardiologia.
Hoje, esta doença, que tantas vítimas nos custou, está praticamente controlada em nosso meio. Os programas continuados de vacinação, incrementados na administração do ministro Almeida Machado, e mantidos e ampliados, desde então, nos propiciam níveis muito baixos. Em 92, foram registrados ao redor de 200 casos no país.
Por isso, causou-me espanto a notícia de surto epidêmico, na Rússia, com mais de 3.000 casos em 1991, 3.901 em 92 e 9.919 casos até outubro de 93 com mais de 300 óbitos, apenas neste ano. Também a Ucrânia apresenta, para este período de 93, 2.096 casos. A Organização Mundial da Saúde não costumava publicar dados epidemiológicos da União Soviética. Havia porém a idéia de que ali dava-se atenção prioritária ao tratamento preventivo. Pensava-se que na URSS ocorria o mesmo que em Cuba, onde praticamente foram eliminadas as doenças preveníveis por vacinação e onde a mortalidade infantil é das mais baixas do mundo.
Inicialmente, pensei que a epidemia ocorrera em consequência das dificuldades devidas ao desmoronamento do sistema comunista. Informações, por mim junto à OMS, indicam que a maior parte dos casos ocorreu em jovens, ao redor dos 15 anos, e, até em adultos, que deveriam estar vacinados.
É legítimo, por isso, imaginar-se que os programas de vacinação não tinham a prioridade que se supunha. Estamos acostumados a ver descontinuidade de programas de vacinação e, até ausência dos mesmos, em países sem recursos, pobres, do Terceiro Mundo. Não seria lícito imaginar-se que isso pudesse ocorrer em país com estação orbital, com astronautas, com submarinos atômicos, com arsenal nuclear –capaz de destruir a vida no planeta– e com armamentos, os mais avançados.
Enquanto isto, o Brasil, país sabidamente pobre, com dificuldade de toda ordem, consegue dominar as doenças preveníveis por vacinação eliminando algumas e mantendo altos níveis de cobertura vacinal. Em 1992 foram vacinadas, em um mês contra o sarampo, 47 milhões de crianças até 14 anos.
Cabe refletir sobre esses dados e buscar uma explicação, pelo menos razoável, do que eles significam e que papel teria a liberdade de participação popular na determinação dos objetivos e prioridades que interessam a sociedade como um todo.
Os regimes de força, totalitários, costumam atender com eficiência os setores que, aqueles que detém o poder político, decidirem eleger como prioritários. A Cuba de Fidel Castro elegeu saúde e educação e, nisto, mostrou eficiência inegável. A União Soviética parece ter elegido o poderio militar e a tecnologia espacial, e, nisto mostrou-se, altamente eficiente.
Em ambas situações foram os detentores do poder político que impuseram às suas sociedades as prioridades que elegeram. Não havia possibilidade de contestação, não havia oposição capaz de alertar para as inconveniências da política adotada.
Experimentamos algo semelhante na fase mais crítica do nosso período autoritário. Felizmente, no Brasil, mesmo neste período, conseguimos manter um mínimo de participação popular. A própria campanha da anistia e das diretas foram desencadeadas em pleno regime militar.
Na área da saúde, assistimos, desde fins dos anos 60, crescente participação popular. A reforma sanitária, movimento de âmbito mundial deflagrado pelas posições da OMS, consolidados em 1978, em Alma Ata, floresceu em nosso país.
Quando secretário da Saúde entre 1979 e 1982, fui testemunha de movimentos deflagrados por médicos sanitaristas e profissionais da saúde, associados a comunidades eclesiais de base e outros movimentos de população, que exigiam atenção primária de saúde, com ênfase para a vacinação. Destes movimentos nasceu o Plano Metropolitano de Saúde de São Paulo que já conta com 12 anos de exemplar continuidade administrativa. Pena que as limitações financeiras limitem os benefícios que poderiam ser obtidos.
Foi, a partir daí que se criou em 1980 o Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde), do qual fui o primeiro presidente, o Conasems, idêntico ao anterior, mas, dos secretários municipais, seguidos pelos comitês de saúde, as conferências municipais, estaduais e nacionais de saúde. De tudo isto resultou a inserção, na Constituição de 88, dos princípios de universalidade e equidade, com descentralização em nível municipal, que vem sendo progressivamente implementada.
Temos mil restrições, estamos vivendo período, já longo de inflação e recessão, há grandes limitações no atendimento médico hospitalar, os serviços de emergência estão flagrantemente deficientes, mas continuamos a vacinar nossas crianças, eliminando as doenças transmissíveis, como a poliomielite –há mais de quatro anos sem nenhum caso– e o sarampo, grandemente reduzido na sua incidência, o mesmo ocorrendo com as demais doenças, preveníveis por vacinação.
A presença da difteria, 75 anos depois da revolução comunista, tornou-se um indicador de prioridades equivocadas e mostra como fundamental a participação popular na correção de rumos a serem seguidos por quem detém o poder. Venho insistindo que os objetivos de longo prazo de uma nação devem ser determinados pela sociedade organizada e não exclusivamente pelo governo, cuja função principal seria a de administrar respeitando as necessidades e os anseios da população.
Só espero que aqui, a participação popular na determinação das prioridades nacionais, no combate à corrupção, no restabelecimento da ética e na busca da eficiência administrativa se mantenha e se amplie sem exageros corporativos e com a verdadeira visão democrática, capaz de permitir, não só convivência social sadia, mas, e principalmente o estabelecimento de distribuição justa de renda e redução das desigualdades sociais, geradores da violência, com a qual estamos todos desconfortavelmente convivendo.

ADIB D. JATENE, 64, cardiologista, é professor titular e diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e diretor científico do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas. Foi ministro da Saúde (governo Collor) e secretário da Saúde do Estado de São Paulo (governo Maluf).

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