São Paulo, terça-feira, 18 de janeiro de 1994
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Eastwood filma inferno em cores claras

Em seu filme com Kevin Coster, o diretor contesta imagem da sociedade perfeita criada pelo cinema americano
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Num mundo perfeito, as pessoas que escrevem sobre cinema chegariam sempre às mesmas conclusões sobre os mesmos filmes. A mesma imperfeição do mundo que, como lembra Sergio Augusto em seu artigo de sexta-feira na "Ilustrada", conduz a filmes melhores e piores, também nos leva a não reconhecer virtudes evidentes, ou a reconhecê-las excessivamente diante dos filmes.
"Um Mundo Perfeito", de Clint Eastwood, recém-estreado em São Paulo, parece um desses filmes destinados a suscitar visões contraditórias. No sábado, era Bernardo Carvalho quem invectivava o filme na "Ilustrada".
Duas opiniões que me levaram ao cinema disposto a cumprir o pedregoso exercício de ver um filme que já se sabe, de antemão, um aborrecimento. Tanto mais que, tendo gostado muito dos últimos filmes de Clint, restava a suspeita de que voltasse a fazer um "Raposas de Fogo" da vida.
Desde as primeiras sequências, "Um Mundo Perfeito" me pareceu um filme intrigante. A definição que Sergio Augusto dá dele, no entanto, está longe de ser inexata: algo que não se define como "thriller" ou filme intimista; que pega vários atalhos, mas não chega a parte alguma.
Embora não consiga aderir à parte final da proposta ("não chega a parte alguma"), todo o resto é justamente o que me encanta. Sergio faz, inclusive, uma lista de filmes já feitos que justificariam sua impressão de "dejà vu": de "O Fugitivo" até "A Louca Escapada", de "Shane" até "Robin Hood" ou "A Testemunha".
Ao longo da sessão, lembrei de vários outros filmes que "Um Mundo Perfeito" evoca de um modo ou outro: "As Vinhas da Ira", de John Ford, "High Sierra", de Raoul Walsh, "Sargento York", de Howard Hawks, "Pretty Baby", de Louis Malle, "E.T.", de Spielberg. E mais: qualquer "road movie", um faroeste de Sergio Leone, o "Alcatraz" de Don Siegel, qualquer burlesco do cinema mudo.
A lista não é fechada. A cada espectador pode ocorrer outros filmes. O que ela sugere, de imediato, são duas hipóteses: ou bem Clint Eastwood é um ignorante da história do cinema, e seu filme não passa de uma salada, ou trabalha a partir dessa história e, então, as coisas fazem sentido.
Vejamos uma cena, em que o fugitivo Butch Haynes, aliás Edgar Poe (Kevin Costner) e seu pequeno refém, Phillip (T.J. Lowther) chegam a uma pequena cidade do Texas. Locação antológica, quase uma cidade morta, ali fica a loja "Friendly", onde as balconistas se esforçam por ser as mais gentis do país (em troca de um prêmio de US$ 20). Elas derramam-se em mesuras até descobrir que os clientes não são exatamente quem pensam que são.
No momento seguinte, os rostos tão sorridentes escandem fúria e ódio. Nessa rápida notação de um mecanismo comercial, Clint observa uma sociedade que trocou a relação com as coisas pela relação com puros signos, dentro de uma codificação ao mesmo tempo rígida e superficial. Não importa o que você demonstre ser. Importa o que o rádio diga o que você é.
Nesse universo dominado pela mídia, Clint mergulha na mitologia das aparências por excelência, que é o cinema. Com efeito, repassa a história do cinema americano. Não como ignorante, mas com a mesma desenvoltura com que restaleceu, há menos de dois anos, os princípios do faroeste, em "Os Imperdoáveis". Sabe que o sonho americano está construído sobre filmes. É com o cinema que deve dialogar.
Aqui, portanto, o caminho é inverso ao de "Os Imperdoáveis". Os gêneros sucedem-se. Passamos do intimismo ao "thriller", da comédia à tragédia. Os gêneros se arrebentam, as figuras na tela não ganham fixação, escapam ao nosso conhecimento. Quando pensamos que algo vai em um sentido, é atropelado por outro, que o nega e desloca.
Costner é um criminoso, mas não é bem isso; o pequeno Phillip é Testemunha de Jeová, mas não é só isso. Um pode evoluir para a pureza, às vezes, da mesma forma como o outro se deixa contagiar pelo mundo, seus detritos e proibições (de comprar uma fantasia até atirar em um homem). O mesmo se poderá dizer de Clint (o xerife), ou Laura Dern (a assessora do governador), ou qualquer outro personagem. Todos estampam pelo menos duas faces contraditórias.
Não é de estranhar que o filme se constitua como uma deriva, tão mais bucólica quanto, no final, encaminha-se para a tragédia: no homem que, minutos e minutos, sangra na barriga, aproxima-se da morte, concentra-se toda a ironia do filme. Não há perfeição alguma no mundo. O olhar de Clint é de um pessimismo atroz.
Não há harmonia, exceto no tempo precário da deriva, que acontece, ela mesma, num espaço labiríntico, portanto infinito: estamos diante de uma tragicomédia de erros, onde armas, fantasias (em todos os sentidos), veículos, são apenas um simulacro de existência, uma imitação da vida.
Nesse sentido, pode-se ver Clint Eastwood fazendo trabalho de moralista. É um mundo de indiferenciação, de pessoas ocultas sob insígnias, vestimentas, crachás sob as quais não existe nenhum real, nenhuma verdade, nada que o movimento seguinte não anule. Nem certos, nem errados: todos os movimentos são em falso. É o inferno em cores claras, o puro horror de um mundo que Deus parece ter abandonado a tal ponto que até a religião já não se distingue da superstição. "Um Mundo Perfeito" me parece, desde já, um dos mais belos filmes deste ano.

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