São Paulo, quinta-feira, 20 de janeiro de 1994
Texto Anterior | Índice

O cravo e a ferradura

MARCELO LEITE

A notícia de que o relator da revisão constitucional, deputado Nelson Jobim (PMDB-RS), incluiu em seu parecer a extinção do voto obrigatório faz renascer no cidadão a esperança –passageira, como se verá– de que este país, afinal, venha a tomar jeito. Se um instituto tão arcaico e longevo da cultura política brasileira pode ser banido da Constituição, raciocina abstratamente o eleitor até hoje compulsório, é porque o terremoto institucional iniciado com o impeachment de Collor parece de fato ter intensidade para abalar os alicerces do prédio tosco que se chamou de República no Brasil.
Em certo sentido, o voto obrigatório constitui o emblema acabado do vício de origem da anêmica democracia nacional: a soberania não como pressuposto, direito, mas como dever, obrigação a ser cumprida. Para as diferentes modalidades de oligarquia que vampirizam este país há décadas, o eleitorado sempre representou uma massa de menores de idade, aos quais não cabe sequer o livre arbítrio. A democracia, nessa representação tortuosa, nunca emanou da população, mas a ela era prescrita em doses variáveis, ao sabor das sístoles e diástoles do regime. O voto obrigatório funcionava como tônico fundamental, o rícino amargo que as crianças, mesmo a contragosto, eram obrigadas a engolir para se fortificar.
A queda desse anacronismo seria um indício forte de que, realmente, há uma revolução em curso.
Manda a prudência, contudo, em especial neste país, não se entusiasmar muito com essa possibilidade. Embora se acredite que as escolhas do relator reflitam certo consenso ou pelo menos a tendência majoritária entre os partidos que participam da revisão constitucional, o voto facultativo parece fadado a enfrentar forte resistência, particularmente de partidos tradicionais como PMDB e PPR –não por acaso os herdeiros residuais do bipartidarismo implantado durante o regime militar.
A suspeita de que teses como a do fim do voto obrigatório estejam sendo assimiladas apenas como um verniz "modernizante" para a Constituição reformada sai fortalecida pela constatação de que Jobim acertou uma pancada no cravo e outra, muitas vezes mais possante, na ferradura. Trata-se da idéia de acabar com a necessidade de desincompatibilização de membros do Executivo para que possam concorrer em eleições, e isso com vigência já no pleito deste ano.
Acabar com a desincompatibilização representa, por si só, providência profundamente questionável. Se mesmo obrigados a deixar o cargo muitos governantes dão um jeito de usar e abusar da máquina estatal, em conluio com substitutos de encomenda, é evidente que pela nova regra os palácios de governo seriam transformados em comitês eleitorais disfarçados. Que se cogite tal mudança no regulamento para uma campanha eleitoral que no fundo já começou, talvez para beneficiar um dos equilibristas mantidos no ministério, é um absurdo de segundo grau, desses que só ocorrem à incrível classe dos legisladores brasileiros.

Texto Anterior: Em louvor do santo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.