São Paulo, sexta-feira, 21 de janeiro de 1994
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Favor não atirar nos membros da CPI

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

A Comissão Parlamentar de Inquérito que levou à renúncia do presidente Collor, em dezembro de 1992, serviu para demonstrar que o Poder Executivo não é sagrado para o Poder Legislativo e o Judiciário. A CPI do Orçamento, que acaba de encerrar seus trabalhos, teve o mérito de provar, logo a seguir, que o Legislativo também não é sagrado para si mesmo. Os poderes, em suma, são interdependentes mas não são nem interconiventes, nem, sobretudo, auto-indulgentes. Podem muito bem se julgarem a si mesmos e uns aos outros, para que se aperfeiçoem os três. É esta a lição que estamos todos aprendendo, não à custa dos livros, ou da experiência dos outros, mas à custa de nós mesmos, dos nossos erros e do propósito de corrigi-los.
A CPI do Orçamento trabalhou bem. É sempre melhor ocupar a cadeira do juiz do que o banco dos réus, mas não há nada de agradável em nos vermos de repente no papel de acusadores de companheiros da véspera. Por isso merece nosso respeito a Comissão em geral e em primeiro lugar seu presidente, senador Jarbas Passarinho, e seu relator, deputado Roberto Magalhães.
A Comissão não teve tanta repercussão popular quanto sua precursora, a que investigou Collor. Acontece que Collor manteve o tempo todo uma postura teatral impecável. Mesmo os que mais o detestavam por verem com clareza sua culpa mantiveram, enquanto durou sua queda, um interesse pela performance. Collor só perdeu a maioria do seu público quando, arrogante, atiçou as massas contra si mesmo, pedindo que todas saíssem às ruas vestindo verde-amarelo em sinal de apoio ao presidente: teve que enfrentar o povo vestido de preto, vestido de luto por estar no governo um presidente que melhor seria para o país se estivesse morto. Collor convocou correligionários e se viu cercado de órfãos.
Quanto a José Carlos Alves dos Santos, que levou à formação da CPI que agora se encerra, esse, ao contrário de Collor, parece ter adotado com convicção o papel de vilão. Ele entrou em cena em novembro de 1992, quando foi à polícia dar parte do sequestro de que teria sido vítima sua mulher Ana Elizabeth Lofrano. A polícia desconfiou da mal contada história e foi, um mês depois, à residência de José Carlos, encontrando, nessa primeira busca, US$ 300 mil. Numa segunda busca achou mais US$ 600 mil. Essas somas, e mais outras, encontradas entre fotos indecentes e vídeos pornográficos, soltaram logo a língua de José Carlos, que era diretor do Departamento de Orçamento da União: os dólares ele os havia ganho do deputado João Alves, relator-geral da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional. Depois do nome de João Alves vieram os outros nomes. José Carlos detesta ficar sozinho. Apesar de entender de números e de roubalheiras ele planejou a própria vida de maneira não só vil como atabalhoada. Não se pode enriquecer com discrição, graças a um cargo como o que tinha e partir ao mesmo tempo para aventuras de delírio sexual e de assassinato. Sua única e genuína alegria parece ser essa de aumentar o mais possível o número daqueles que cometeram crimes a seu lado. Collor, quando extremamente acuado, convocava a televisão e sozinho, olho no olho, falava a cada ouvinte. José Carlos, por dá cá aquela palha, pede que convoquem de novo a CPI do Orçamento para que ele aumente sua lista de cúmplices. Antes de descoberto o cadáver de sua mulher –assassinada por dois esbirros, com a colaboração ativa dele próprio– José Carlos, na solidão da sua cela, pediu aos carcereiros que deixassem sua amante vir dormir com ele.
Quanto a João Alves, sua característica, seu traço fundamental, parece ser uma sede insaciável de dinheiro, de bens materiais. Numa matéria paga que publicou no "Correio Braziliense" e foi transcrita em outros jornais, João Alves, depois de contar que ganhou US$ 10 milhões exercendo seu "hobby" de jogar na loteria, traça seu auto-retrato: "Não tomo bebida alcoólica, não fumo, não vou ao cinema há mais de quinze anos, não ando em festas (...) e o carro mais novo que possuo é de 1988. (...) Meu dinheiro é todo aplicado da melhor forma possível, visando um melhor rendimento". Esse egrégio gatuno, que transferiu uma colossal fortuna dos cofres públicos para sua conta particular, como pessoa não infunde piedade e nem mesmo curiosidade em ninguém. Que fará João Alves, quando se senta diante da sua cordilheira de dólares? Provavelmente come dinheiro. E depois caga dinheiro, como o gato de Ariano Suassuna, no "Auto da Compadecida".
Na referida matéria paga que plantou nos jornais, João Alves, tentando despertar algum interesse no público, se declara vítima de calúnias, de invenções maldosas que fazem com que se sinta uma espécie de invenção de Kafka na vida real. João Alves deve ter lido –ou mandou algum assessor ler para ele– "A Metamorfose", porque ele declara, depois de citar Kafka, que seus detratores estavam querendo transformá-lo num (aspas dele) "ser asqueroso". Pobre Kafka, pobre Gregor Samsa herói da "Metamorfose". Samsa, em verdade, se transformou num doce e incompreendido inseto, e não merece virar, nesaa versão nova, sanguessuga do povo brasileiro.
Procurei evocar aqui as duas figuras que compõem a proa da nau de infames e insensatos que a CPI do Orçamento investigou para de certa maneira entender por que não levaram o povo às ruas, como ao tempo em que era impedido o presidente Collor. Mas Collor, além do seu natural gênio histriônico, foi destronado. Havia ali um herói, ou anti-herói, eleito por 35 milhões de eleitores. Era o fato novo, espantoso.
A CPI do Orçamento lidou com uma quadrilha de anões que manipulavam fundos públicos, transformando-os em fundos particulares. O povo se vê, no caso, diante de um antigo e tradicional crime. Para descrever seu horror diante do que se revelava aos seus olhos disse o deputado Roberto Magalhães, ontem, na televisão: "O que eu vi, foi uma nação saqueada". É horrível mas é antigo. No curso de uma outra pesquisa descobri outro dia, no "Jornal do Comércio" do dia 2 de outubro de 1867, uma notícia sobre o escândalo de superfaturamento na venda de escravos vendidos ao governo para serem enviados à linha de frente na guerra do Paraguai.
A moral da história é que, com ou sem caras-pintadas e comícios, o povo sente que inicou uma luta contra velhos vícios. Ainda bem que uma severa atuação como a da CPI do Orçamento nos renova a esperança de regeneração. E aqui, uma palavra final: temo que tantas cassações acabem resultando em derramamento de sangue. Menos sangue de suicídio que de homicídio. Dentro do sistema político que ainda impera no país, honra só se lava com o sangue dos outros. Outro dia Ronaldo Cunha Lima, governador da Paraíba, deu dois tiros na boca do ex-governador Tarcisio Buriti –que estava sentado à mesa de um restaurante, almoçando– e Ronaldo não foi sequer processado. Continua governando a Paraíba. Maus exemplos como esse podem levar algum corrupto a querer provar que homem que é homem não leva cassação para casa.

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