São Paulo, sexta-feira, 21 de janeiro de 1994
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Diálogo de gigante busca certeza clássica

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Diálogo de gigantes busca certeza clássica
Correspondência entre Schiller e Goethe atualiza a questão de como ser trágico ou heróico no tempo presente
Os trechos escolhidos da correspondência entre Goethe e Schiller (publicados pela editora Nova Alexandria) oferecem não poucas dificuldades ao leitor brasileiro. Mas vale a pena enfrentá-las.
Todo mundo relaciona o nome de Goethe (1749-1832) à tragédia do "Fausto", e o nome de Schiller (1759-1805) a... bem, não tanto ao drama de "Maria Stuart" ou ao texto da "Ode à Alegria" na Nona Sinfonia de Beethoven, mas principalmente ao nome de Goethe. Ambos são os representantes do chamado "classicismo alemão".
Fica um pouco difícil, assim, acompanhar a correspondência entre os dois, que muitas vezes se aprofunda em comentários sobre textos a que o leitor brasileiro tem pouco acesso. Goethe comenta o "Wallenstein" de Schiller, e este discute "Hermann e Dorothea", de Goethe. Ambos cuidam dos poemas que escrevem em colaboração, as "Xênias".
Estamos aparentemente, diante de um livro pouco convidativo. Mas mesmo sem conseguir entrar nos detalhes da correspondência, há muito a tirar daí.
Dois aspectos ressaltam do livro. O primeiro é o poder imenso, literalmente gigantesco, que Goethe e Schiller tinham de teorizar sobre sua própria obra. O segundo é a consciência que tinham de si mesmos, de seus objetivos como artistas.
Na virada do século 18 para o 19, ambos se dedicavam ao seguinte problema: é possível ser um "clássico"? Atingir o ápice de perfeição de Homero, de Sófocles, da escultura grega? Como fazer uma epopéia ou uma tragédia dignas desse nome?
Os dois se envolvem, então, numa discussão teórica e prática de grande riqueza. Goethe diz, e Schiller não discorda, que é próprio do artista moderno "a imperfeição". Mesmo os pintores da Renascença são imcompletos, à medida que cada um cede ao específico de sua personalidade. Mas, consola-se Goethe, em suas limitações eles são reis.
Provém de Schiller, entretanto, as cartas mais "teóricas" e interessantes desse ponto de vista. Ao contrário de Goethe, que tinha certo desprezo pelas especulações metafísicas, e que buscava englobar em si mesmo toda a experiência humana, Schiller oscilava entre uma vocação filosófica e um pendor para o artístico e o concreto.
É Schiller quem provoca, por exemplo, a questão de se um romance como o "Wilhelm Meister" de Goethe corresponde ao temperamento poético de seu autor. Se peripécias do enredo são compatíveis com o lirismo. E onde estaria, a diferença entre o autor épico e o autor trágico? Um tem de tratar o seu acontecimento como inteiramente passado, diz Schiller, "e o trágico, como inteiramente presente".
Ambos reprovam a confusão entre os gêneros literários, característica da escola romântica. Goethe odeia as pretensões a uma "prosa poética":
Tudo o que é poético deve ser tratado ritmicamente." Em outra carta, Schiller concorda, dando versão mais fundamentada dessa opinião: "a pureza da métrica... serve para uma representação física da necessidade interior, quando, ao contrário, uma licença da métrica faz sentir uma certa arbitrariedade."
Espaço considerável, nessas cartas, é dedicado ao problema da escolha do assunto, do tema, de uma obra de arte. Seria possível alcançar real grandeza épica tratando de realidades tão fracas, tão anti-heróicas, como as da Alemanha no fim do século 18?
O crítico marxista Georg Lukács, em "Goethe e Seu Tempo", dedica uma análise ampla a essa correspondência. Nota, em última análise, o problema de se aspirar a um "classicismo" literário. Nota, em última análise, o problema de se aspirar a um "classicismo"literario num momento em que a fealdade, a mesquinhez do capitalismo tomavam conta do ambiente. Mas isso, o próprio Lukács diz, era do conhecimento de Schiller e Goethe. A busca do classicismo apesar de tudo, esperança dos dois autores em feitos heróicos capazes de justificar epopéias contemporâneas, era, na opinião de Lukács, matizada pelo fato de que, politicamente, não aceitavam as grandezas e descaminhos da Revolução Francesa.
A Alemanha, diz Lukács, queria os progressos trazidos pela Revolução Francesa sem que fosse necessária uma revolução. Noto de passagem que um autor nada marxista, Gilberto Chesterton, diz em "A Época Vitoriana da Literatura", obra anterior à de Lukács, algo semelhante a respeito dos literatos ingleses. Há diferenças óbvias entre a situação econômica da Alemanha e da Inglaterra naquela época. Mas os literatos em geral vivem de expectativas semelhantes. Utopias e heroísmo são talvez o que há de mais repetitivo na história, e sempre alimentam as imaginações.
Toda essa discussão talvez pareça abstrusa. Mas se a traduzirmos para o Brasil de hoje, não é tanto.
Assim como Schiller e Goethe discutiam as possibilidades de se fazer uma epopéia ou uma tragédia na Alemanha do século 19, não estaríamos, aqui, às voltas com problemas semelhantes? Como explicar, ou justificar, por exemplo, o ato de se escrever um romance no Brasil? Seria possível imitar os modelos de Balzac ou de Joyce? Balzac teria tudo a ver com os escândalos de Brasília. Mesmo assim, algo sugere que tal empreitada soaria falsa. E como, no final do século 20, num ambiente acanhado como o Brasil, seguir ou adaptar os feitos da vanguarda européia de 100 anos atrás? Questões teóricas e práticas, que a correspondência entre Schiller e Goethe, através de um considerável hiato histórico e cultural, nos incita a resolver.
Unicef
Em artigo anterior, referi-me a um anúncio contra a fome na televisão como sendo de responsabilidade da Unicef. Estava errado. Provém da Anistia Internacional.

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