São Paulo, sexta-feira, 21 de janeiro de 1994
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Almodóvar faz versão do 'Aqui Agora'

FERNANDA SCALZO
DE PARIS

Sorte que Pedro Almodóvar não assistiu o "Aqui Agora". Seu novo filme "Kika", que estreou anteontem em Paris, poderia ficar insuportável se somasse a exploração da miséria humana à da miséria material. Se "Kika" consegue ser, em alguns momentos, uma comédia é só porque seu "mundo cão" é o Primeiro.
No cenário fortemente colorido a que o espectador dos filmes de Almodóvar já se acostumou, vive a maquiadora Kika (Verónica Forqué), um poço de ingenuidade e boa disposição com o mundo. Kika conhece Ramon (Alex Casanovas), um fotógrafo de lingeries, ao maquiá-lo supostamente morto. Mas como Ramon "ressuscita", eles passam a viver juntos e todos os outros personagens em volta deles.
Nicholas (Peter Coyote), escritor americano e mediano, era casado com a mãe de Ramon até ela se suicidar. Andrea (Victoria Abril), não por acaso ex-psicóloga e ex-namorada de Ramon, apresenta o programa "O Pior do Dia", um "Aqui Agora" ou "reality show". Juana (Rossy de Palma) é a empregada lésbica apaixonada por sua patroa Kika e irmã do psicopata e ator pornô Paul Bazzo (Samtiago Lajusticia).
Todos os personagens se cruzam e se encontram, naquele momento típico das comédias americanas, no apartamento hiperdecorado de Kika e Ramon. Tem voyeurismo, serial killer, estupro, crimes passionais, tudo gravado pela câmera instalada na cabeça e os refletores nos seios de Andréa (magnificamente vestida por Jean-Paul Gaultier).
Almodóvar não tem um olhar leve sobre toda essa crueldade humana. Se em "Ata-me!" seu bandido podia virar mocinho, em "Kika" o peso dos atos não abandona as personagens. O diretor espanhol, arauto da libertinagem, não é generoso com o cinismo ou com a falta de valores morais (no sentido que importa do termo). O filme vai ganhando em densidade e em termos de pessimismo talvez perca só para "O Matador".
Mas "Kika" é ainda um filme de Almodóvar e tem cenas impagáveis como a de Dona Paquita (interpretada pela mãe do diretor, Francisca Caballero) entrevistando o escritor Nicholas num programa de TV. "Eu também sou viúva e sofro muito de solidão", diz Dona Paquita. "É por isso que faço esse programa, porque meu filho é o diretor e é uma maneira de eu estar perto dele", vai conversando diante das câmeras, entre uma fatia e outra de chouriço.
Também está em "Kika" a transexual e dita senhora Almodóvar, Bibi Andersen, como uma das mulheres de Nicholas. A exceção de Kika, que na sua ingenuidade consegue fazer trocas com o mundo, as personagens são extremamente solitárias, quase incomunicáveis em seus delírios pessoais. As câmeras fotográficas e de TV fazem aquele papel já conhecido de mediadoras da realidade –a realidade que virou show por falta de olhar diretamente humano.

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