São Paulo, sexta-feira, 21 de janeiro de 1994
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Maria Moura

JOSÉ SARNEY

Pode parecer, pelo título, e nestas horas de efervescência política, que estou escrevendo sobre um nome esquecido, que não entrou na CPI do Orçamento. Maria Moura nem sabia o que era Orçamento nem Congresso, seu mundo era um mundo fantástico, nos sertões imaginários do Nordeste, criados numa síntese de tudo, por essa jovem romancista que marca com um livro, no fim do século, a história da literatura brasileira. Quando Jorge Amado surgiu, Alceu Amoroso Lima anunciou: "Romancista ao norte". Agora, é a nossa vez de gritar, como os velhos gajeiros: "Romance à vista, dos mais belos e melhores".
Eu tenho sido um crítico de nossa sociedade industrial, no que se refere ao tratamento dado à cultura. Os valores materiais são os que contam, os espirituais não têm cotação em bolsa. Por isso mesmo disse, na justificativa do projeto da Lei Sarney, de saudosa memória e desejada ressurreição, que há mais de 30 anos não surgia no país um novo grande escritor, grande pintor, grande músico, grande poeta. Os grandes são os que já são grandes e consagrados. Jorge, Josué, Heráclito, João Ubaldo, Ledo Ivo, João Cabral e todos os outros deuses. Talvez seja exagero. Tem muito grande talento aí esquecido pela mídia, que hoje faz o sucesso, a glória, a desgraça e até o nosso desconhecimento.
Pois não é que, agora, vem essa moça do Ceará, Raquel de Queiroz, e nos surpreende com um livro extraordinário, uma técnica inovadora, uma linguagem destas que o tempo despojou das coisas inúteis, essa sedução que é tentação dos escritores, o texto trabalhado. É a mesma Raquel, aquela dos seus grandes livros, mas é uma Raquel que todos julgavam acomodada nas suas crônicas, na sua arte de bem-dizer e escrever e bumba: une a tropa, sela os cavalos, põe rifle na cintura, pólvora, bala, rapadura e talento e sai na arte mágica da palavra, criando gente, fazendo mundo, nos trabalhos dos demônios da criação, na melhor de todas as formas. Dá mais gosto a glória de um bom livro já nos 80 do que nos 18 anos.
Sou apaixonado por Raquel desde moço, paixão que herdei e disputei na raça com Odylo Costa, filho. Como o tempo a fez mais bela! Conseguiu fazer 18 anos com 80. Está uma roseira dos campos do "Não me Deixes". Seus olhos de inteligência, perspicácia e sagacidade ficaram mais brilhantes. Como está bonita e como está escrevendo bem.
O romance é coisa difícil porque lida com gente, e gente é coisa do Diabo. O romancista tem de fazê-los. Isto mesmo: fazê-los, como se fazem pessoas. Com amor e com circunstâncias, com ódio ou com desprezo. O escritor, quando quer se ver livre deles, mata-os. Mas quando se cria um grande personagem, aí a coisa fica difícil. Raquel não quis matar Maria Moura, e deixou-a dentro de cada um de nós, para fazer o que bem quiser.
Não quero fazer crítica literária. O que eu quero mesmo é fazer uma carta de amor a Raquel de Queiroz, dizendo que essa menina do Ceará, bondade de criatura, continua sendo a grande escritora, de lugar cativo na história da arte de contar, na literatura brasileira. Sim, senhora dona Raquel, que livrão esse "Memorial da Maria Moura"!

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