São Paulo, quinta-feira, 27 de janeiro de 1994
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Que trabalhem

Há quem tenha dito que uma mentira, repetida vezes suficientes, pode parecer verdade. Pois há a surdos que, pela repetição, travestem-se de normalidade e ameaçam perder o poder de indignar. É que o ocorre com o Congresso Nacional, que, mesmo em meio a debates cruciais como revisão constitucional e plano econômico, registra enormes dificuldades para obter quórum.
Conseguir que os legisladores se dignem a comparecer ao plenário parece ter-se erigido em obstáculo básico para qualquer votação. Qual um bedel atrás de crianças traquinas, é deprimentemente usual que líderes saiam à cata de congressistas pedindo-lhes que vão ao plenário votar.
A aberração chegou a tal ponto que já se fala que a revisão constitucional, por não ter sido iniciada ontem, pode ser postergada para depois do Carnaval, porque num período de férias e de pré-folguedos será improvável conseguir quórum. É um escândalo. Afinal, para os milhões de brasileiros que trabalham, hoje, amanhã, e as próximas duas semanas são dias úteis normais. Por que não para os mandarins do Legislativo?
Já é fato notório, ademais, que o Parlamento –ao contrário do restante da nação– não funciona às segundas e sextas-feiras. Não satisfeito, porém, o Legislativo tenta ainda incluir também as terças e quintas no seu fim-de-semana. Parlamentares já admitem –pasmem, sem sequer ruborizar– que é muito difícil conseguir quórum para votação nesses dias. Como se nada fosse urgente no país, como se não existisse uma crise nem houvesse brasileiros passando fome, a meta parece ser a da semana de um dia. Como se não houvesse vergonha.
É evidente que a atividade legislativa não se restringe a comparecer ao plenário e votar. Há negociações a serem feitas, há comissões que exigem tempo e estudo, há até o contato necessário com a sociedade. Mas há também votações que têm de ser realizadas –e num ritmo adequado às necessidades do país.
Não há nada de normal ou razoável nas dificuldades que o Congresso enfrenta para cumprir sua função básica. Pelo contrário. É uma ofensa que tripudia sobre a população, que não só tem de sustentar um país desajustado, mas também legisladores que parecem como que em férias na ilha da fantasia. E o que se cobra não é nada demais. Só o fim do acinte. Só que façam o que todos os brasileiros fazem. Trabalhar.

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