São Paulo, sexta-feira, 28 de janeiro de 1994
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'Áulis' traz de volta o vigor da tragédia

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

'Aulis' traz de volta o vigor da tragédia
Adaptação da Ifigênia de Eurípides escapa às armadilhas da atualização e conduz à catarse na hora certa
Aulis", bela adaptação da tragédia "Ifigênia em Aulis" de Eurípides, está em cartaz no Centro Cultural São Paulo. Até chegar ao local onde é representada a peça, o espectador passa por uma experiência curiosa.
É que "Aulis" está sendo encenada num porão do Centro Cultural. Trata-se, assim, de comprar o ingresso num daqueles corredores meio-abertos, meio-fechados do térreo, onde predomina o aspecto de estação de trem ajardinada, de gare na Babilônia, que não é o menor charme do Centro.
E, depois, cumpre descer, descer sem parar escadas em caracol de ferro. Você passa, estranhamente, pelos escritórios, pelas salas de trabalho do pessoal administrativo. Depois, há um caminho subterrâneo; placas nas portas indicam: almoxarifado, eletricidade, depósito.
Há entulho, pedaços de cimento, escadas, extintores. Uns gatos se escondem no escuro.
Aí você entra no teatro. Três arquibancadas confrontam a cena. O chão está coberto de areia. As ruínas do cenário se confundem com os restos da engenharia municipal. Até o concreto armado parece ser de mármore. E em volta da cena, há filas de velas acesas, desenhando um trapézio ritual.
Estamos na Grécia. Mas não a Grécia luminosa dos cartões postais. Algo de mais primitivo, de mais áspero, de mais desértico se afirma, e combina-se bem com a violência do concreto aparente, com a arquitetura inacabada e áspera do edifício moderno.
E não deixa de ser simbólico descer tantas escadas, ir tão fundo no subsolo de um prédio moderno para encontrar uma encenação tão pura, tão austera da tragédia de Eurípides.
Agamêmnon (Celso Frateschi) é o chefe dos exércitos gregos. As tropas estão prontas para iniciar sua expedição a Tróia. Mas não há vento para as velas dos navios. Um oráculo é consultado. O resultado é terrível. Agamêmnon terá de sacrificar sua própria filha, Ifigênia. Só assim a viagem poderá ser feita. Agamêmnon consente; em seguida se arrepende. Tenta evitar que Ifigênia chegue para o sacrifício. Mas ela e sua mãe, Clitemnestra, pensam que haviam sido convocadas para um casamento. Agamêmnon tinha dito que Ifigênia deveria casar-se com Aquiles. Chegam a Aulis, felizes.
As circunstâncias estão prontas, assim, para todo tipo de dilacerações, enganos, mentiras, esforços vãos. A inocente Ifigênia não percebe que seu pai, embora cheio de remorsos, pretende sacrificá-la.
Emoções tão fortes e mal-entendidos tão fatais constituem um campo aberto para o talento dos atores. O espectador sabe tudo o que está se passando. Os personagens, nem sempre. Mas a própria ignorância, a própria felicidade de Ifigênia e Clitemnestra já terão de revelar, quase sem querer, um tom trágico, uma aura de fatalidade e desventura.
Num espetáculo concentrado, enxuto, onde as paixões mais extremas parecem restringir-se frente à dureza e à lógica do dramaturgo, cada gesto, cada olhar dos atores, cada frase se carrega de eletricidade.
Seria dizer pouco deste "Aulis", dirigido por Elias Andreato e Frateschi, que tudo –exceto alguns maneirismos de coreografia– serve esplendidamente à nobreza, à escuridão do texto clássico. Temos uma Clitemnestra forte, maternalmente forte, em Edith Siqueira; um excelente, inflamado Menelau; um belo Aquiles, e uma Ifigênia tão jovem, tão aparentemente frágil como pessoa, que mesmo sua menor experiência cênica contribui para a veracidade da personagem.
Mas é sobretudo Celso Frateschi, no papel de Agamêmnon, quem dá "frisson" teatral ao espetáculo. Agamêmnon mente o tempo inteiro; arrepende-se de ter consentido no sacrifício de Ifigênia, e depois convence-se de que a única saída era matá-la.
Coisa rara, num ator, é que tudo –de um gesto a um fio de barba– contribua para dar dramaticidade ao personagem. Frateschi conseguiu esse milagre. Não precisamos prestar atenção em nada: só seu olhar já nos diz tudo.
É incrível como o simples olhar de um ator pode mudar a cena. Lembro-me de uma montagem do "Tartufo", de Molière, com Paulo Autran. O ato terminava com Autran em silêncio, sozinho, à frente da platéia. Ele não fazia nada; estava sentado, sem expressão, numa banqueta. Mas seu olhar, brilhando nas hipocrisias e ambições do personagem, era uma obra de gênio.
O olhar de Frateschi, em certas cenas de "Aulis", é também dessas coisas intensíssimas. Furtivo, porque Agamêmnon se sente culpado; raivoso, porque Clitemnestra se opõe ao sacrifício; orgulhoso, porque ele é o comandante dos gregos; humilhado, porque o comandante dos gregos mente e disfarça.
"Aulis" é um forte e bonito espetáculo. Não pretende "inovar" nem "reinterpretar" o que quer que seja. Vai fundo nas emoções do aspectador.
Uma amiga, assistindo a montagem recente de texto clássico, reclamou com razão de certa tendência brasileira. A de não aguentarmos a dramaticidade, a virulência de uma situação, e procurarmos a todo custo uma catarse imediatista, seja com o ingresso de batucadas em cena, seja com o recurso a piadas, grosserias, palhaçadas. Os diretores brasileiros talvez tendam, com efeito, a fazer catarses antes da hora, ou a serem "autorais", subjetivos demais. As vezes isso dá certo. Mas quando vemos, como no caso de "Aulis", uma tragédia em estado de pureza, o efeito é grande, vigoroso, inesquecível.

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