São Paulo, sexta-feira, 28 de janeiro de 1994
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"M. Butterfly" desafia o verossímil

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: M. Butterfly
Produção: EUA, 1993
Direção: David Cronenberg
Elenco: Jeremy Irons, John Lone
Onde: a partir de hoje nos cines Liberty, Gazetinha e Eldorado 3

"Nossos amigos, os verossímeis", como dizia Hitchcock, farão um favor a si mesmos se passarem ao largo de "M. Butterfly". Eles jamais acreditarão na história de um homem que se apaixona por outro homem, pensando tratar-se de uma mulher.
É o que acontece no novo filme de David Cronenberg e na estranha história de René Gallimard (Jeremy Irons), funcionário da embaixada francesa em Pequim, anos 60. Durante uma festa para diplomatas ocidentais, ele vê Song Liling cantar "Madame Butterfly", a ópera em que uma chinesa se apaixona por um ocidental, é abandonada e suicida-se.
René é um homem imbuído da superioridade cultural do Ocidente e, como tal, ignorante dos costumes chineses. Essa ignorância o leva a se entregar de corpo e alma à paixão fulminante que experimenta pela cantora, e a todas as suas decorrências.
Quando falava dos "verossímeis", Hitchcock referia-se aos espectadores que se apegam a detalhes para desautorizar a verdade dos filmes. "M. Butterfly" é sujeito a isso, sem dúvida. Afinal, Song Liling (John Lone) é um ser ambíguo. É, de pleno direito, uma cantora. E também um homem.
Passemos pelo fato do filme ser inspirado em um caso real e na peça de teatro decorrente (escrita por David Henry Wang). A realidade não tem nada a ver com isso. Aliás, pode-se dizer que "M. Butterfly" é concebido expressamente contra a realidade (como, aliás, todos Cronenberg).
Não é um questão de verossímilhança. Quando o cientista de "A Mosca" (1986) se deixa levar por experiências que o transformam em um monstro, é por estar procurando ampliar a realidade, negar seus limites conhecidos. Não é tão diferente do que acontece com o escritor de "Mistérios e Paixões" (seu filme mais recente), com os ginecologistas de "Gêmeos" (1988) etc.
O que pode surpreender, no caso, é o caráter da transformação. Não há qualquer mudança física implicada, nenhuma dessas "aberrações" que se acusava Cronenberg de cultuar. Nada, exceto a cegueira de um homem apaixonado por um ser que julga tratar-se de uma mulher.
Com a simplicidade dos "verossímeis", houve quem afirmou –para demonstrar o quanto o filme é digno de incredulidade– que basta olhar as mãos de John Lone para ver que não são de mulher. Com um mínimo de conhecimento de cinema, porém, sabe-se que é fácil "dublar" um detalhe corporal ao fazer um primeiro plano (substituir uma mão por outra mais "feminina").
Não é por aí. "M. Butterfly" recupera uma história descabeladamente romântica, atirando seu espectador na torrente de sinais contraditórios do final de século: do Ocidente ao Oriente, do homem à mulher, do amor à traição –tudo que nos cerca são sinais contraditórios, opacos.
Pode-se entendê-los de todas as maneiras possíveis. Todas tendem igualmente ao equívoco. Todas permitem construir uma realidade, mas ela será sempre falsa. Estamos no mesmo mundo de "Videodrome" (1982), em que falso e verdadeiro, real e a alucinação coexistem, partilham o mesmo solo de entendimento.
Estamos, enfim, embora sob uma vestimenta de bom senso (mais uma máscara, mais um travestimento), no universo delirante de Cronenberg. Aqui, a mulher perfeita é uma mentira; aqui, só um homem pode fazer papel de mulher, porque só um homem pode entender perfeitamente uma mulher –para citar duas tiradas antológicas de Song Liling.
Aqui, para resumir, o amor é um estado de plena inverossimilhança, mentira e demência. É o estado de um homem decaído, tudo bem. Mas ninguém negará ao sr. Butterfly o dom da plenitude.

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