São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 1994
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Em toda a parte

MOACYR SCLIAR

Quando lhe passaram uma cópia do edital a sua reação foi de incontrolada, selvagem alegria: até que enfim as autoridades estavam fazendo alguma coisa. Denunciando a presença de um aidético na cidade não apenas alertavam a população, como davam uma exemplar lição a um irresponsável, a alguém que, por causa de uma vida desregrada havia contraído uma doença tão terrível como a peste.
– Fizeram muito bem –disse à mulher aquela noite. – Só acho que podiam ter ido mais além. Deveriam obrigá-lo a usar uma roupa especial, um distintivo, uma coisa qualquer que o identificasse como aidético.
A mulher achou que aquilo seria um exagero, mas ele insistiu: em matéria de doença contagiosa, tudo é permitido.
– Você sabe o que faziam com os leprosos na Idade Média, mulher? Não sabe? Eles eram obrigados a andar com matracas. Isto mesmo, com matracas: assim todos sabiam quando eles se aproximavam. É claro que aqui no Brasil não daria para implantar essa lei. O caras iam usar as matracas em bloco de Carnaval. Neste país, você sabe, tudo acaba em brincadeira. Mas esse edital é uma esperança de que as coisas podem estar mudando. Vou até emoldurá-lo.
Ela achou melhor ficar calada. Sabia que, quando ele estava exaltado, não tolerava que o contrariassem. De modo que foram dormir, ele sorrindo, triunfante.
No meio da noite acordou, sobressaltado.
Era no edital que estava pensando. Ou melhor: no papel em que o edital estava impresso.
Uma sequência de eventos esboçava-se em sua mente, nítida: ele recebera o edital das mãos de um funcionário. Que trabalhava com o médico da Prefeitura. O qual, sem dúvida, examinara o doente, ou pelo menos tivera contato com ele. E, passando de mão em mão, o vírus. O vírus da Aids. Que agora chegara à sua casa, a seu corpo.
Acendeu a luz, saltou da cama, foi olhar o edital. Parecia papel comum: nele não havia nada de suspeito. Assim como nada de suspeito havia em seus dedos. Mas ele sabia que o vírus estava ali. Mesmo que lhe dissessem o contrário, mesmo que lhe provassem cientificamente o contrário, não acreditaria. O vírus estava ali. O vírus, como o Mal, está em toda a parte.

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