São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 1994
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Negação da cidadania

DALMO DE ABREU DALLARI

Quando uma pessoa recebe as informações básicas sobre seus direitos adquire consciência de três coisas que são fundamentais para a dignidade humana e a boa convivência em sociedade: 1. aprende que é pessoa, como todos os seres humanos e que nessa condição merece e deve respeito; 2. é informada de que todas as pessoas, mesmo as mais pobres, têm direitos e podem exigir que eles sejam protegidos; 3. aprende que a vida social é um conjunto de direitos e obrigações, que devem ser respeitados por todos para que se busque a justiça sem cometer violências.
Na cidade de São Paulo, como em grande parte do mundo, existem milhões de pessoas que nada sabem de direitos e que, sentindo o peso de injustiças e agressões, não acreditam em meios pacíficos para a melhoria de sua condição social. Visando enfrentar tal situação e cumprir o dever constitucional de "combater os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos" (Constituição Federal, art. 23, inciso X), a prefeita Luiza Erundina enviou à Câmara Municipal um projeto de lei criando um Serviço de Apoio Jurídico à População Necessitada. Sensíveis ao elevado alcance social da proposta, todos os partidos com representação na Câmara Municipal lhe deram apoio e o serviço foi criado pela lei municipal número 11.300, de 9 de dezembro de 1992.
Por absurdo que pareça, o prefeito Paulo Maluf encaminhou projeto de lei à Câmara, esvaziando o Serviço de Apoio Jurídico, que ficaria reduzido a pequeno prestador de assistência judiciária, impedido de dar consultas e orientação jurídica à população pobre e desinformada. Estranhamente, esse projeto prevê convênio com o Tribunal de Justiça para prestação da assistência judiciária, o que é inconstitucional, pois aquele Tribunal não tem competência para esse tipo de atividade.
O projeto do prefeito Paulo Maluf convertendo o Serviço de Apoio Jurídico em modesto apêndice do Poder Judiciário é inconstitucional, mas além disso é retrógrado, é desonesto quanto à justificativa e é antidemocrático e anti-social, anulando um trabalho em favor da cidadania. O projeto é retrógrado porque a tendência mundial é no sentido de proporcionar apoio jurídico, ajudando os marginalizados a se integrarem na sociedade, dando-lhes consciência de direitos e deveres. Exemplo disso é a França, que desde 1851 já tinha um serviço de assistência judiciária e por meio do decreto presidencial 88-1111, de 12 de dezembro de 1988, transformou-o em Serviço de Ajuda Jurídica, que agrupa a assistência judiciária e a sócio-jurídica.
O projeto do prefeito Maluf tem fundamentação desonesta. Na justificativa se afirma que por causa da lei que criou o Serviço de Apoio Jurídico "entidades conveniadas estão provocando invasões de terras". E diz mais que o Tribunal de Ética da OAB decidiu ser ilegal "convênio firmado pela Secretaria da Habitação e Desenvolvimento Urbano-Sehab com a Central de Entidades Populares", como também o Tribunal de Contas do Município considerou irregulares "ajustes firmados por HART - Superintendência da Habitação Popular (Funaps) para a contratação de serviços de assistência jurídica à população, lastreados na lei n.º 11.300/92". Isso é desonesto porque nenhum convênio foi celebrado com base na lei aí referida, que deu nascimento ao Serviço de Apoio Jurídico, o qual só foi criado em dezembro de 1992. E por disposição expressa da lei o Serviço é órgão da Secretaria de Negócios Jurídicos, nada tendo a ver com Sehab ou Habi e com os ajustes celebrados por essas entidades.
O projeto matando o Serviço de Apoio Jurídico é antidemocrático e anti-social porque impede o acesso ao patamar mínimo da cidadania a amplas camadas da população, notoriamente marginalizadas da ordem jurídica. Basta assinalar que instalado experimentalmente, sem qualquer publicidade, um serviço de consultas jurídicas para a população pobre de São Paulo, atendido por Procuradores Municipais, só na região da Sé foram concedidas, em 1992, 2.517 consultas. Se a população que hoje vive marginalizada passar a conhecer o direito e a acreditar nele, achando que os advogados, promotores e juízes são melhores que os justiceiros, haverá mais justiça e menos violência e toda a população sairá ganhando. Os democratas e pessoas de boa vontade são a favor disso.

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