São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 1994
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O ' laissez-faire' demográfico no Brasil

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O laissez-faire demográfico no Brasil
Nos 28% dos domicílios mais pobres do país vive quase a metade do total de crianças com menos de 14 anos
Quando Malthus publicou, em 1798, o seu polêmico "Ensaio Sobre a População", a população total do planeta era menor do que a atual população chinesa. Foi só por volta de 1830 que a população mundial ultrapassou, depois de centenas de milhares de anos de relativa estabilidade, a marca de 1 bilhão de habitantes. O primeiro bilhão é o mais difícil.
Por trás deste aumento vertiginoso da população mundial está a ocorrência de um fenômeno simples. Houve uma queda brutal na taxa de mortalidade (graças a avanços em saúde pública, medicina preventiva e produção agrícola), sem que tenha havido uma redução compatível na taxa de natalidade. As sociedades humanas assimilam com muito maior facilidade as técnicas e hábitos modernos de controle do morrer do que os de controle do nascer.
Quanto a esse ponto, contudo, o fosso entre países ricos e pobres é tremendo. A Divisão de População da ONU prevê que a população mundial atingirá a marca de 8,5 bilhões de habitantes em 2025. Mas dos 3,2 bilhões de seres humanos adicionais que devem vir ao mundo nas próximas três décadas, estima-se que apenas 200 milhões viverão nos países desenvolvidos. Os outros 3 bilhões terão que enfrentar a luta pela vida e sobrevivência nas regiões mais pobres da Ásia, África e América Latina.
O fato é que, enquanto a população dos países ricos dobra (às taxas atuais) a cada 111 anos, bastam 34 para que ela dobre no mundo em desenvolvimento. Daí o progressivo encurtamento do intervalo de tempo separando cada bilhão adicional de seres humanos. Nos países pobres vivem hoje 75% da população mundial. Em apenas seis deles –China, Índia, Indonésia, Brasil, Bangladesh e Nigéria– estão concentrados a metade dos seres humanos vivos.
No Brasil, o padrão de crescimento demográfico seguiu de perto essa dinâmica. Caiu rápida e consistentemente a mortalidade, mas a natalidade continuou –e em larga medida continua– presa ao passado.
Entre 1950 e 1975, a população brasileira cresceu mais, em termos absolutos, do que havia crescido em toda a história do país desde o descobrimento até 1950. Se a passagem dos 50 para os 100 milhões de habitantes nos custaram 24 anos, os 50 milhões seguintes demoraram menos ainda – 18 anos. A marca dos 150 milhões de habitantes foi rompida em 1992.
Nas últimas décadas, é verdade, teve início um período de declínio da taxa de fecundidade (número médio de filhos por mulher). Ela caiu de 5,7 em 1970 para 3,5 em meados dos anos 80 (último dado a que tive acesso). O ponto crucial, no entanto, é que essa tendência ao declínio da fecundidade de modo algum significa, como muitos acreditam, uma "solução definitiva e espontânea" do nosso problema demográfico.
Três fatos, em particular, merecem destaque:
1) O momentum demográfico. Como resultado da explosão populacional já ocorrida, 42% da população brasileira tem menos de 17 anos (em qualquer país estável essa proporção é de 26%). Este enorme contingente de menores sequer ingressou ainda em idade e função reprodutiva. Mas eles irão, é claro, reproduzir-se. A entrada desse grande contingente na sua fase reprodutiva representa, por si só, formidável pressão demográfica, e isso mesmo na hipótese mais favorável de que sua conduta seja marcada pela maior prudência, com os casais tendo, digamos, não mais que dois filhos. Mesmo que a fecundidade continue caindo no ritmo dos últimos anos, nossa população continuará crescendo a taxas elevadas no futuro (em torno de 1,7% ao ano até o final do século).
2) Diferenciais de fecundidade. São as famílias de baixa renda e pouca escolaridade as que mais procriam no Brasil. Enquanto nas famílias com renda mensal até 2 salários mínimos cada mulher tem, em média, 5,4 filhos, nas famílias de alta renda esse número cai para 2 filhos. O mesmo ocorre no tocante ao nível de escolaridade das mães. Para as brasileiras com menos de 1 ano de escola, a média de filhos é 5,5 por mulher. As com mais de 9 anos de escola têm apenas 2,3 filhos em média.
3) Juvenescimento das mães. Outra tendência que se acentuou foi a maternidade precoce. Ao contrário do que ocorre em todo o mundo desenvolvido, a proporção de mães adolescentes (15-19 anos) no Brasil subiu de 6,5% do total de mulheres nessa faixa etária em 1970 para 10,5% nos anos 80. Nas famílias de baixa renda, 26% das mulheres entre 15 e 19 anos já é mãe.
À luz desses dados podemos entender melhor porque a pobreza no Brasil incide de forma aguda sobre a população mais jovem, com os 28% dos domicílios mais pobres do país abarcando a espantosa cifra de 45% do total de crianças com menos de 14 anos.
Quando a economia brasileira crescia a taxas elevadas, o laissez-faire demográfico era defendido com o argumento de que o crescimento populacional seria absorvido pela rápida expansão do mercado de trabalho. Isso não ocorreu. Imaginar agora que, com a queda da fecundidade, o problema populacional está resolvido é outra falácia trágica. Se é verdade que nada fizemos para refrear a "decolagem" da população no pós-guerra, isso não significa que a operação "aterrissagem", ora em curso, deva seguir pela mesma trilha.
Uma política ativa de planejamento familiar, incluindo a legalização do aborto, incentivos à família reduzida e programas de educação, aconselhamento e propaganda, não resolverá por si mesma nossos graves problemas sociais. Mas é difícil conceber um programa sério de redução da pobreza, formação de capital humano, emancipação feminina e conservação da natureza do qual ela não faça parte. A omissão significa prosseguir na rota do laissez-faire demográfico.

EDUARDO GIANNETI DA FONSECA, 36, é professor da Faculdade de Economia da USP e autor de "Beliefs in Action" (Cambridge University Press) e "Vícios Privados, Benefícios Públicos?" (Companhia das Letras).

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