São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 1994
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A quarta etapa do Plano FHC

GILSON SCHWARTZ

A hiperinflação destrói a moeda; noPlano FHC tenta-se arbitrar a destruição
Os economistas brasileiros, especialmente a partir da gestão Marcílio, tiveram bastante tempo para sonhar com a estabilização indolor. Muitos, amargurados com os fracassos da heterodoxia, remexeram alfarrábios e revisitaram as explicações para o fim das hiperinflações clássicas. Alguns se dedicaram especialmente a tirar dessas experiências históricas lições para o caso brasileiro.
O Plano FHC combina receitas que parecem condensar todo esse aprendizado autocrítico. Nem nacional-populista, nem estritamente ortodoxo, o plano procura situar-se no terreno supostamente intermediário de uma dolarização indireta. Na essência, busca a coordenação das expectativas criando um indexador universal independente da inflação passada. O novo indexador, atrelado ao dólar, poderia virar moeda.
O encanto da proposta é sugerir que a mudança entre regimes monetários pode ocorrer sem custos ou, pelo menos, com custos infinitamente menores aos já suportados pelos agentes econômicos. Nesse sentido o principal argumento a favor de sua adoção é o mesmo empregado em qualquer reforma monetária, incluindo as que recorrem ao congelamento de preços: se houver custos na transição, eles são infinitamente inferiores tanto aos custos do sistema anterior quanto aos benefícios do sistema futuro.
Sonha-se portanto com uma espécie de anestesia da temporalidade. O ideal é apagar-se o passado (a memória inflacionária) e induzir a construção de um sistema equilibrado no futuro.
As hiperinflações clássicas foram de fato vencidas com expedientes que sugerem uma mudança de regime (monetário e fiscal) na qual os agentes econômicos passam a acreditar (mesmo quando ela não existe objetivamente ou acontece muito mais lentamente do que se fazia crer). Mas se é interessante a modelagem dessa temporalidade das reformas moentárias em ambientes hiperinflacionários, a aplicação dos modelos à situação brasileira corre um risco fundamental: falta-nos justamente a vivência plena de uma autêntica hiperinflação. A nossa é uma híper "indexada", "rastejante", "reprimida" ou "potencial'", mas que jamais chegou a ser híper aberta. Resultado: os cálculos de custos e benefícios envolvendo passado, presente e futuro nunca envolvem aquelas dimensões infinitas que, noutros casos, criaram a vontade de acreditar (e apoiar) uma autêntica mudança de regime monetário e fiscal. Difundida a crença em perdas generalizadas com a continuidade do "status quo", seria possível apostar numa situação em que todos podem ganhar. No Brasil real, entretanto, nem todos perdem com a situação corrente e ninguém acredita em ganhos generalizados depois do ajuste.
A proposta da dolarização indireta equivale, na falta da híper, ao governo simular o que seriam seus resultados (a referência à moeda forte, por exemplo). Na híper, entretanto, ocorre de fato uma destruição catastrófica e irreversível da moeda nacional. No Plano FHC tenta-se arbitrar essa destruição, como quem controla um processo de fissão nuclear num laboratório, convertendo a energia destrutiva em dinâmica construtiva. Mas não ocorre a híper, nem estamos num laboratório. De quebra, o Estado brasileiro carece das condições de legitimidade para fazer crer na sua capacidade de simular a destruição da moeda velha. Nossa usina é uma bomba.
O governo e os agentes econômicos aos poucos percebem esses dilemas. Rapidamente, nas últimas semanas, veio diluindo-se o caráter espontâneo e gradual do projeto originalmente anunciado pelo ministro Fernando Henrique Cardoso. Parecem ganhar força no governo as posições favoráveis a medidas mais contundentes, especialmente no controle direto de preços e tarifas, mas também na regulamentação das regras de conversão da moeda velha na moeda nova. Enfim, não é um congelamento, mas como o câmbio deverá ser congelado, ao menos temporariamente, talvez seja mais prudente não confiar tanto assim no mercado. Uma paulada é uma paulada.
Ocorre que mesmo uma paulada, uma reforma monetária com algum apoio heterodoxo, baixando bastante a inflação por algum tempo, logo enfrentará o desafio da credibilidade na nova moeda. É o problema já amplamente identificado dos riscos de uma inflação em URVs.
Existirá apenas uma solução para essa inflação: a transição de um regime de indexação ao dólar (âncora cambial) para um novo regime, de conversibilidade cambial. Ou seja, uma argentinização do Plano FHC. Na realidade esta seria a quarta etapa, não anunciada, do plano.
Ao promover a URV à categoria de moeda atrelada ao dólar, o governo tenta simular um dos efeitos da hiperinflação (a dolarização) sem abrir mão de um instrumento típico de regimes de inflação crônica (a emissão de moeda sem lastro, vulgo imposto inflacionário). Imaginar que a URV se afirma como nova moeda é acreditar que o governo não precisará mais da inflação para fechar suas contas. Num regime de conversibilidade cambial o governo perderia justamente essa capacidade de se financiar gerando inflação.
A entrada nessa quarta etapa dependerá da intensidade da inflação "residual" após a terceira etapa. Quanto mais alta a inflação em URVs, mais próximos estaremos de uma hiperinflação de verdade em cruzeiros reais.
A principal questão da política econômica hoje é essa percepção dos riscos de contaminação da moeda nova pela híper da moeda velha, ou seja, da eventual impossibilidade de controlar a inflação em URVs senão aceitando a livre conversibilidade. O plano atribui ao Estado a capacidade de simular a híper para tirar dela apenas os resultados positivos. Uma híper de verdade tornaria a terceira etapa apenas o preâmbulo de uma autêntica dolarização.
Há dois caminhos possíveis. De um lado, o retorno à estratégia de adesão lenta, gradual e voluntária à nova moeda, mantendo-se uma política de combate à inflação na moeda velha. De outro, a aposta na conversão rápida e compulsória da economia ao novo regime monetário.
O governo parece cada vez mais inclinado à opção menos cautelosa, na proporção direta das pressões políticas crescentes. A queda do diretor de Política Monetária do Banco Central na semana passada levantou essas suspeitas no mercado.
Já se sabe que baixar a inflação não é difícil. A cada choque, entretanto, o repique vem com mais violência. O Plano FHC, se apressado, pode levar à mágica sempre adiada de uma verdadeira hiperinflação, superável apenas por uma irreversível dolarização.

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