São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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'Chatô' desnuda um ídolo do direito

WALTER CENEVIVA

A advogada estava nitidamente aborrecida, manifestando até certa irritação, quando me disse em tom definitivo:
"– Nunca mais citarei esse sujeito!"
"Esse sujeito", na frase da advogada, é, nada mais, nada menos, que o maior cultor do direito penal que este país já teve, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Nelson Hungria, aliás, Nelson Hungria Hoffbauer (ele deixou de usar o sobrenome alemão nos anos 40).
A causa imediata da irritação da minha colega foi a leitura do livro "Chatô", grande sucesso editorial escrito por Fernando Morais, com a vida do jornalista Assis Chateaubriand. Acontece que o grande penalista é mencionado em sete páginas do livro, nas quais surge em versão depreciativa de sua condição de respeitável jurista e magistrado.
Resumo a história contada por Morais. Sendo casado, Chatô abandonou a mulher e passou a viver maritalmente com uma jovem de 15 anos, Cora Acuña, com a qual teve uma filha, Tereza, que ele não reconheceu. Apenas o nome da mãe constou da certidão de nascimento, como se o pai fosse ignorado. Todavia, Cora o abandonou por outro homem, mais moço. Chatô, para vingar-se, raptou a menina, mas o juiz Elmano Cruz, substituto de Hungria nas férias deste, deferiu pedido de Cora, atribuindo-lhe a guarda da filha.
Os passos seguintes, narrados pelo biógrafo, são de horrorizar quem passou a vida respeitando Hungria. Chatô foi a Porto Novo do Cunha, interior de Minas, onde Hungria passava as férias. Obrigou-o a interromper o descanso e voltar ao Rio de Janeiro, no avião de seu jornal. Antes que o dia terminasse o fez reassumir a vara e anular a decisão de Elmano Cruz.
Tereza ficaria, pelo novo despacho, na casa do próprio Hungria, permitidas visitas somente de manhã e à tarde. Chatô nunca respeitou os horários e com frequência retirava a menina para passeios até em outros Estados, sem que isso sensibilizasse o magistrado, cuja carreira recebeu elogios do jornalista, até terminar como ministro do Supremo Tribunal Federal.
A narrativa, envolvendo uma das maiores figuras do mundo jurídico brasileiro, me leva à teoria pura do direito, sustentada por Hans Kelsen, nas primeiras páginas de seu livro clássico de filosofia jurídica. Kelsen entendia que a teoria pura deveria eliminar tudo o que fosse não-jurídico no exame do direito, para focalizá-lo em sua inteireza científica. Leva-me, também, à frase de Getúlio Vargas sobre as insuficiências do direito escrito, quando disse: "A lei, ora a lei...". Getúlio tinha razão nas suas dúvidas sobre a eficácia da lei. Tanto que –com seus poderes ditatoriais– mudou a legislação então vigente, para facilitar os objetivos de Chatô na batalha contra Cora.
Há várias lições a tirar desses episódios. A primeira é a de que o homem público, seja político, seja magistrado, deve ter visão de seu papel na história da cidade, do Estado, da nação. Só o presente não basta. A segunda demonstra a impossibilidade de esgotar a verdade apenas com o jurídico. Há mais coisas entre o céu e a terra do que podem imaginar os juristas, nos limites de sua visão técnica. A terceira e última sugere a distinção entre o homem e sua obra. Bom ou mau enquanto cidadão –quem poderá dizê-lo, à distância?–, Nelson Hungria Hoffbauer foi um grande estudioso do direito penal. Apesar da história serão muitos os que continuarão a citá-lo. Outros acompanharão a revolta da advogada.

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