São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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Juizados especiais: a revolução que tarda

LUIZ FLÁVIO GOMES

Enquanto os demais Estados continuam ancorados na apática, infundada e infértil discussão em torno da constitucionalidade da iniciativa legislativa sobre os juizados especiais previstos no art. 98, I, da CF, Mato Grosso do Sul, em primeiro lugar (pela lei 1.071/90), e, agora, também Mato Grosso (pela lei 6.176/93), já praticam, com indiscutível eficácia e aceitação social, particularmente no âmbito criminal, um verdadeiro e moderno modelo de Justiça participativa e resolutiva.
Pode-se dizer que neste campo, como em tantos outros, mudou por completo o assim chamado epicentro da modernidade, do avanço e do progresso. Para quem está em São Paulo, por exemplo, já não é preciso cruzar o Atlântico para conhecer o que há de mais avançado e mais atual em termos de Justiça criminal: basta atravessar o rio Paraná!
A salutar e oportuna ousadia dos dois Estados, que conseguiram superar o patamar do nefasto abulismo, desencadeou no nosso país o (já tardio) processo revolucionário de efetiva tutela jurisdicional e constitucional dos direitos humanos de todos os que se envolvem com o fenômeno criminal (infrator, vítima e sociedade).
Para além de alvissareiramente anunciar o moderno e socialmente útil, os juizados especiais sinalizam o ocaso do antiquado modelo napoleônico e formalista de distribuir justiça, que é um sistema de resposta única (pena de prisão, que o Estado persegue a todo custo) à conduta desviada.
Diferentemente do que ainda ocorre no resto do país, que só se preocupa com "decidir" os pequenos conflitos de interesses, dentro de esquemas formalistas e exageradamente burocráticos e irracionais, nos juizados especiais em funcionamento a finalidade precípua é a de "solucioná-los". Para tanto, repristinaram, em bases civilizadas, a possibilidade de "comunicação" entre os principais protagonistas do delito (infrator/vítima), dos quais o sistema clássico "roubou o conflito", segundo Nils Christie. Ao permitir a transação penal, nas infrações menores, ensejou à vítima a imediata reparação dos danos, que é o que ela mais deseja, muitas vezes. Em sentido oposto ao modelo clássico, que se caracteriza pelas "penas perdidas" (Hulsman) e inúteis, seja porque quase nunca são executadas, seja porque prescrevem com frequência, nos juizados o que há de mais comum, além da indenização à vítima, é a obrigação alternativa de pagar cestas básicas (de alimentos ou remédios), como prestação de serviços à comunidade. Para que se tenha uma idéia do avanço, em Mato Grosso, até mesmo o furto simples admite transação.
O direito penal, como se percebe, pode ser eficaz e ter cunho social não só quando suas clássicas penas são efetivamente aplicadas e cumpridas, senão também quando sua ameaça, como ultima ratio, vem posicionada como pano de fundo de um novo e revolucionário modelo de Justiça criminal, que permite o acesso da vítima ao processo (tornando-a mais comunicativa e resolutiva), a salutar participação da comunidade (garantindo-lhe maior legitimação democrática), bem como a efetiva ressocialização do condenado, seja porque este sente a pena transacionada, visto que a cumpre, seja porque reconhece "sua" vítima. Até mesmo os agentes formais do controle penal (polícia, promotor e juiz) certamente descobrirão que podem ser socialmente mais úteis quando inseridos dentro de um sistema mais humano, informal, onde predomina a oralidade, a celeridade, a economia e a racionalidade. Estamos convencidos de que nos juizados especiais começa a ter sentido prático a clássica advertência de Radbruch no sentido de que não devemos nos preocupar só em melhorar o direito penal, senão em algo melhor que o direito penal.

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