São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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É preciso saber interpretar a Constituição

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A mais recente bolação da tecnocracia federal é a proposta de desconstitucionalização do sistema tributário.
O nome pomposo adotado tem um certo charme linguístico, rivalizando com as mais herméticas criações do economês pátrio. Em verdade, a tese envolve um pouco de irresponsabilidade na sua divulgação, por não ter havido precisão no delineamento do que seria retirado da Constituição e posto na legislação ordinária. Ficou a proposta na vacuidade e generalidade.
Demonstra, ainda, um desdenhar dos entendimentos lançados pelo Supremo Tribunal Federal acerca do sistema tributário, que raia a ignorância profunda do que se pode chamar de "Constituição Viva". Vale dizer, a compreensão jurisprudencial predominante acerca das suas regras e princípios fundamentais.
Em face da edição da Emenda Constitucional nº 3/93, que previu o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF) e a lei complementar subsequente que o institui, entendeu o Supremo Tribunal Federal que a exclusão estabelecida, em favor do IPMF, ao princípio da anterioridade da lei (regra geral, o imposto criado num ano só pode ser cobrado no exercício seguinte) e da imunidade recíproca (impossibilidade de a União, Estados, Distrito Federal e municípios instituírem impostos sobre a renda, patrimônio e serviços de outros entes federados), apesar de introduzida formalmente no corpo constitucional, não tinha validade.
Em outras palavras, o Supremo considerou inconstitucionais tais exceções, mesmo adotadas em forma de emenda constitucional, por ofenderem direitos e garantias individuais, dentre os quais estão os princípios protetores do constribuinte em face do apetite voraz do fisco.
Princípios que compõem as cláusulas pétreas (limitações materiais ao poder constituinte derivado), previstas no artigo 64, parágrafo 4º da Constituição Federal e insuscetíveis de alteração sem ruptura da ordem vigente, por integrarem o núcleo que consagra os valores essenciais e permanentes do Estado brasileiro.
Esses princípios de salvaguarda do contribuinte constituem uma das excelências previstas no texto constitucional. Não há, entre as Constituições contemporâneas, texto que sequer rivalize com o elenco das garantias previstas na Constituição Brasileira.
Daí se explique que, em face da criação de novas incidências tributárias, apareça uma enxurrada de ações, no Judiciário, contestando-as. O resultado é existirem mais demandas contra o fisco do que ações promovidas contra os contribuintes, objetivando a cobrança de impostos. A experiência aconselha ao fisco prudência nas suas inovações.
O poder de tributar do Estado está submetido a rígidos princípios que dificultam o exercício da competência tributária, principalmente para a criação de um novo imposto.
O IPMF é bom exemplo. A sua previsão dependeu de emenda constitucional justamente porque os mandamentos constitucionais impossibilitavam a sua instituição mediante o exercício da competência residual da União, tendo em vista ser um tributo cumulativo e ter base de cálculo e fato gerador comuns a outros impostos.
Numa democracia, que se afirma com maior intensidade a cada dia e que aspira consolidar-se como Estado Democrático de Direito, será muito difícil, para não dizer impossível, um retrocesso típico da conduta de governos ditatoriais.
Pretender colocar as garantias do contribuinte e as limitações ao poder de tributar ao sabor mercurial das conveniências ocasionais do Tesouro ou das razões de Estado constitui arranjo característico de setores tecnocratas, desvinculados de compromissos democráticos, obcecados por uma vocação legislativa sem limites.
Consistiria em extrema temeridade deixar para o legislador ordinário e, principalmente, para as medidas provisórias, definir e redefinir os princípios constitucionais em matéria tributária. A experiência indica que haveria a insegurança máxima dos contribuintes.
Talvez a questão fosse apenas dar seguimento à tendência esboçada na criação do Fundo Social de Emergência, de reduzir o nível de partilha do IPI e do Imposto de Renda com os Estados, Distrito Federal e municípios. Se essa é a questão, ter-se-ia desencadeado um maremoto, quando na verdade deveria ter havido apenas uma forte tempestade.
A disciplinação da partilha do produto da arrecadação tributária, é sabido por qualquer estudante imberbe de direito, não é matéria tributária e sim financeira.
Pode ser que se queira alterar os percentuais dessas destinações, pois hoje a União é partícipe minoritária do produto da arrecadação do IPI e do Imposto de Renda. Essa, a grande fragilidade das fianças federais. Nessa questão de redução do montante destinado aos outros entes componentes da Federação existe um farol a piscar amarelo, aconselhando cautela e atenção.
Consiste também cláusula pétrea a impossibilidade de abolição da forma federativa do Estado. Por consequência, uma diminuição significativa dessas transferências constitucionais, que reduza à total impossibilidade financeira algum Estado-membro ou município, poderá caracterizar ofensa ao princípio federativo, o que inviabilizaria o sucesso da emenda apresentada nesse sentido.
Embora seja possível reduzir-se o percentual das transferências constitucionais, há um limite, que é o atentado à sobrevivência financeira do ente federado.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, é professor de Direito Tributário e Financeiro na Universidade de Brasília e ex-secretário da Receita Federal.

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