São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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A dinâmica do mandato presidencial

EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Terminada a cacofonia da campanha e praticamente selada a vitória de FHC, as atenções se voltam para o que pode acontecer no próximo governo. O impacto do Plano Real no quadro sucessório deixa pouca margem para dúvida. FHC subiu na maré montante da estabilidade prometida e o mandato que ele está recebendo das urnas carrega um desafio claro e expresso –honrar a promessa e consolidar a conquista da moeda estável.
O caminho da estabilização duradoura é conhecido. Ele passa por uma restrição orçamentária firme para os gastos do setor público e pela ação disciplinadora do mercado sobre o setor privado. O fundamental é não permitir que o Banco Central financie o Tesouro, sustente os bancos oficiais (federais e estaduais) ou cubra o déficit fiscal do governo via emissão primária e/ou venda de "moeda indexada" como se fosse dívida pública.
Mas saber o que precisa ser feito não basta. Será preciso agir e gerir. O golpe de mestre da desindexação pela plena indexação está fadado a ter vida curta –e triste memória– se não for seguido por medidas duras que lancem as bases da moeda estável. A parte fácil e a vitória nas urnas estão aí –falta o resto. O sangue, suor e lágrimas da estabilização brasileira ainda está por vir.
O poder transforma os homens. Para o bem ou para o mal, ninguém passa incólume pelo exercício do poder. Há líderes que crescem, outros que encolhem; alguns revelam o que têm de melhor, outros o que têm de pior. A grande incógnita é saber como será FHC na Presidência. Estará ele à altura da missão assumida quanto optou por sair do Ministério da Fazenda para fazer do Real o seu trampolim de campanha?
Muito dependerá da arte de agir no momento propício –o sentido de ocasião que é a marca dos grandes líderes e que os gregos antigos chamavam "kairós". O alerta de Shakespeare, pela voz do estóico Brutus em "Júlio César", vai direto ao ponto: "Há uma maré nos afazeres humanos que, se for aproveitada na cheia, leva ao êxito; mas, se for perdida, toda a viagem de uma vida desemboca em águas rasas e infortúnios".
O êxito do Plano Real dependerá agudamente da capacidade de FHC de agir no momento propício, ou seja, enquanto é tempo. Se perder a maré cheia dos primeiros meses de mandato e não fizer logo, com muita coragem, ousadia e firmeza, o que precisa ser feito, é difícil imaginar que tenha condições de fazer algo mais tarde. O primeiro ano do novo governo valerá mais, em termos de poder transformador, do que os três anos restantes.
A base desse prognóstico é uma análise da dinâmica do mandato presidencial no Brasil. A distribuição do poder, em nosso presidencialismo, é muito desigual ao longo do tempo. Há um padrão básico na evolução das relações entre o Executivo e o Congresso durante o mandato presidencial –um padrão com graves consequências sobre a condução da política econômica e os esforços de ajuste fiscal. Qual é esse padrão e como entendê-lo?
O pano de fundo é um sistema partidário frouxo, fragmentário e indisciplinado. Ao assumir o cargo, o presidente possui um fabuloso capital político que lhe permite agir com grande desenvoltura, mesmo sem contar com uma maioria estável no Congresso. O Executivo está com a bola e o resto do sistema político, ainda desorganizado, não tem como resistir às iniciativas do novo presidente. É a lua-de-mel com o poder.
Com o tempo, contudo, esse quadro rapidamente se altera. A situação econômica não melhora, as promessas de campanha não se materializam, os lobbies e interesses corporativos se rearticulam e governadores e estatais assumem as rédeas de suas bancadas. A contrapartida, é que o capital político do presidente, vai se depreciando a uma taxa determinada pelo desgaste, inépcia, falta de liderança e lassidão moral do chefe do Executivo.
Por volta da metade do mandato, o presidente já se tornou presa fácil. A essa altura do jogo, o barômetro da pressão política sobre o Executivo –refletindo a confluência de uma extraordinária gama de motivações e interesses– anuncia chuvas e trovoadas nos céus de Brasília. A tempestade desaba. O Congresso e os governadores passam a dominar a partida, enquanto o Executivo, acuado, limita-se a administrar sua sobrevivência. O fisiologismo prospera e o governo afunda na mais completa paralisia decisória.
Com pequenas variações, foi essa a dinâmica do mandato presidencial nos governos Figueiredo, Sarney e Collor. No mandato-tampão Itamar, o ímpeto reformador do Executivo –se é que se pode falar nesses termos– naufragou na maré baixa da fracassada revisão constitucional. Tem toda a razão, portanto, Sérgio Motta, secretário-geral do PSDB, quando afirma que a "sarneyzação" será inevitável, caso FHC não consiga criar um "momentum" favorável já nos primeiros seis meses de governo.
O problema do "mandato quebrado", é curioso notar, vem de longe na política brasileira. Como relata Thomas Skidmore, em "Brasil de Getúlio a Castelo", era comum, nos anos 50, a observação de que "só existe governo no Brasil durante a primeira metade do mandato presidencial –a outra metade é consumida elegendo o próximo presidente". O federalismo truncado da Constituição de 88 apenas agravou o problema.
FHC, o político, sempre se notabilizou por sua disposição em conciliar e contemporizar. FHC, o ministro, marcou sua passagem na Fazenda pela construção de um discurso correto e pela incomparável maestria com que soube invocar razões e pretextos para não agir. FHC, o candidato, conduziu uma campanha vitoriosa, zarpando na montante do Real e abrigando um mais que generoso leque de alianças.
O que se espera do novo presidente, contudo, é que ele suba à altura do que o momento exige –que seja capaz de enfrentar, agir e liderar. A revisão constitucional é importante, mas ela não pode tornar-se pretexto para a inação. Existem áreas críticas –medidas cruciais para a estabilização, como a privatização dos bancos oficiais– que não dependem de alteração constitucional. A maré subiu. Ela não voltará a se erguer tão cedo nas praias brasileiras.

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