São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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Buchada de bode nunca mais

MAURO RASI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vamos voltar para Paris; Sorbonne, aqui vou eu de novo...
Eu sou ateu! Sou ateu! Não acredito no Espírito Santo nem na Virgem Maria; eu vi `Je Vous Salue Marie' três vezes! Eu adoro Godard!
FHC - Perdi!
Ela não ouve. O som do pagode está alto: "Toda vez que eu chego em casa, a barata da vizinha tá na minha cama..." Ele dá um pontapé na vitrola. Ela abaixa o livro, tira o tapa-ouvido e olha espantada para ele.
FHC - Perdi, Ruth! Perdi!
Ruth - Graças a Deus! (Salta do sofá) Chega de fingir! Vamos voltar a ser o que éramos, digo, o que somos, o que sempre fomos: intelectuais refinados. Sabe há quanto tempo não vou a um concerto, a um vernissage? A um balé? Desde que você se meteu com esse maldito PFL...
FHC - Não me jogue na cara... não me faça sentir ainda mais culpado do que já estou.
Ruth - Nunca vou te perdoar, Fernando; permitir que aquele baiano horroroso redecorasse a nossa casa, o nosso (com sotaque francês) "studiiô"!! Olha o que ele fez! Me obrigar a dormir em rede –estou toda desconjuntada. Até a garrafa de Pernod ele trocou por uma de 51!! Meteu essas horríveis talhas na parede... (Arranca as telhas) esses quadros de queimada!! Nunca pensei que ia ter um romance do Sarney na minha estante...(Chora) Nossos livros!.. ele queimou tudo! (Mostra o livro que estava lendo) Salvei esse Lévi-Strauss aqui porque meti ele dentro dessa capa falsa da autobiografia do Gugu Liberato. Senão, aquele nazista baiano teria queimado também.
FHC - Sinto tê-la feito passar por tudo isso, querida... Para compensar todo o seu sofrimento, chegando em Paris você pode ir direto à Maspero, à Gallimard, à Presses Universitaires e comprar o que você quiser, eu prometo. Pode refazer a sua estante que eu pago! Me penitencio de ter obrigado você a jogar tudo fora e ficar só com Barbara Cartland, J.G. de Araújo Jorge, Sidney Sheldon, Darcy Ribeiro, Adelaide Carraro...
Ruth - Me obrigar a apertar a mão de gente como Ronaldo Caiado, Jorge Bornhausen, Hugo Napoleão, Jacinto Figueira Júnior –"o homem do sapato branco"!!! (Surtando) Tô com as mãos mais sujas que as de Lady Macbeth! (Corre até o lavabo e tenta lavá-las, cantando a ária "Una macchia è qui tuttora", do "Macbeth" de Verdi) "Una macchia è qui tuttora... via, ti dico, o maledetta! Una... due... gli è questa l'ora! (Esfrega desesperadamente as mãos com água e sabão).
FHC - Ruth, por favor, não me vá enlouquecer agora. Não pira, não, hein! Prometo que daqui pra frente tudo vai ser diferente, você só vai apertar a mão de gente politicamente correta.
Ruth - Promete nunca mais me levar pra jantar na casa da Ruth Escobar? Eu tava emagrecendo... mais um pouco e você ia ter a companhia de outro Modigliani na campanha, além do seu vice.
FHC - Arrume as malas e vamos voltar pra Paris!
Ruth - (Sonhadora) Paris!... (Tem um pressentimento) Mas vê se lá não me vai se meter com o Le Penn, hein, fazer acordo com o Jacques Chirac. Graças a Deus o Monseigneur Léfèvre está morto, senão você ia se aliar a ele só pra me torturar.
FHC - Pare com isso. Temos que ficar unidos na adversidade.
Ruth - Me responda uma coisa. Sem mentir.
FHC - Diz.
Ruth - Você sentou na cadeira do Itamar, não sentou?
FHC - (Constrangido) Como é que você pode pensar uma coisa dessas?
Ruth - Não minta, Fernando. Sentou ou não sentou?
FHC - Dei só uma sentadinha rápida... ninguém viu.
Ruth - Eu sabia! Quantas vezes eu te disse que eleição é que nem casamento: o noivo não pode ver a noiva vestida antes da cerimônia! Mas você não pode ver um trono que já vai logo metendo o traseiro...
FHC - (Chocado) Ruth! Isso é linguajar de uma antropóloga?
Ruth - É de tanto ouvir pagode. Acho que estou ficando influenciada...
FHC - Está tudo bem, querida. Tudo vai voltar a ser como antes. Vamos levar uma vida normal, sem essas aberrações! (Quebra o disco de pagode)
Ruth - Não aguentava mais Dicró, Negritude Júnior, a Banda Mel, Martinho de Vila, o Fundo de Quintal...
FHC - Quebra! Quebra tudo, Ruth! Joga tudo fora, joga essa porcariada toda no lixo! Alcione, uaaauu! Que Alcione, o quê! Quebra tudo! (Quebram os discos) Raça Negra... eu, hein! (Ruth rasga o pôster de Benito de Paula) Vamos limpar esse apartamento, dedetizar bem e alugar por temporada. Em real, mesmo. Vamos voltar para Paris. Sorbonne, aqui vou eu de novo.
Ruth - (Cantarola, felicíssima) "I love Paris in the spring, in the summer... in the winter...in the..." Vamos por a Juliette Greco para comemorar (procura)... Cadê a Juliette? Será que aquele baiano safado quebrou? (Descobre o disco quebrado) Olha aqui, Fernando. Não disse que ele tinha quebrado, quando deu uma geral aqui em casa?
FHC - Você compra outro, querida.
Ruth - (Inconsolável) Mas esse tinha dedicatória, né?
FHC - Lembra dos meus mocassins italianos? Ele fez um furo na sola de cada um.
Ruth - Oh, malvadeza! Deixa eu gritar. (Corre pra janela e grita) Baiano nojento! Tipinho ho-rro-ro-so!!
FHC - Disse que pegava bem, que o eleitor do Norte gosta, que eu podia usar, mas só furado. E obrigava os fotógrafos a tirarem as fotos de baixo para cima, pra pegarem o furão na sola. Por isso é que eu ficava com aquele cara expressionista, parecendo o Vampiro de Dusseldorf.
Ruth - (Consolando) Deixa pra lá. A gente faz meia-sola. Você não é nenhuma Imelda Marcos pra dispensar eles. E, depois, salário de professor da Sorbonne não é salário de presidente do Brasil. Que que eu faço com essa carranca do São Francisco? Essas colchas do Jequitinhonha? Devem estar com lepra.
FHC - Vamos levar pra madame Bernard-Henry Lévy... francês se amarra nessas coisas. Se ela não quiser a gente usa como lenha na lareira. (Farejando) Hum, que cheiro horrível. É enxofre?
Ruth - É a Lucimar que tá preparando a sua buchada de bode.
(Correm até a cozinha. A empregada canta, ostensivamente, pra vizinhança ouvir)
Empregada - "Uma incelença entrou no paraíso... Duas incelença entrou no paraíso..." (Vê o patrão) Oi, seu Henrique. Hoje o senhor vai adorar a buchada, tá aqui, ó! Pus salsinha...
FHC - Buchada de bode nunca mais! (Dá um pontapé no fogão. A panela cai. A empregada fica assustada)
Empregada - Não gosto quando o senhor fica doidão...
FHC - (À mulher) Pega lá aquele patê que eu escondi no cofre, junto com uma garrafa de Don Perignon. Vamos comemorar a derrota. Aquele baiano ordinário querendo enfiar bucho na goela da gente enquanto fica se refestelando lá nas Ondinas com aquela cozinheira maravilhosa que o Fidel adora, diz que tem um tempero! (Vai até a janela e grita) Eu sou neguinha!
Empregada - Ih, continua com essa mania de querer ser crioulo? Acendi uma vela pro seu anjo da guarda...
FHC - (Grita) Eu sou ateu! Eu sou ateu! Ha, ha, ha, ha! Eu não acredito no Espírito Santo nem na Virgem Maria. Eu vi "Je Vous Salue Marie" três vezes! Eu adoro Godard! Eu sou a favor do aborto e do homossexualismo... (Volta-se pra mulher e pergunta) Que mais?

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