São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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Buchada de bode nunca mais

MAURO RASI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vocês, intelectuais, não valem nada... Quem é você, Fernando? Você ou Jean-Paul Sartre? Quem sabe eu sou a Simone de Beauvoir e não sei?
O que vamos fazer com essa tonelada de cestas básicas? Apodreceu tudo; imagina o que seria desta alface no segundo turno...
Ruth - Acho que já tá bom, Fernando, por hora... Lucimar, limpe essa bagunça e vem ajudar a gente a encaixotar as coisas (Voltam para a sala. Ruth abre o patê; Fernando, o champagne. Brindam)
FHC - Que é isso aqui?
Ruth - São fotos da campanha. (Olham as fotos com carinho). Olha você aqui, de cocar. Você fica bem de cocar, Fernando. Fica parecendo o Roosevelt quando esteve na Amazônia. Falar nisso, pra quem que a gente vai dar a borduna que você ganhou do Raoni? Se a madame Bernard-Henry Lévy ganhar a carranca... (Ele murmura algo) Quê? Quer dar o berimbau também pra ela? Fernando, é muita coisa. Ela vai enlouquecer; ela já ganhou aquele saiote de Oxóssi... Vamos dar pro Alain Touraine. Pena que a esposa do Althusser morreu, né, coitada, senão a gente dava pra ela.
FHC - Deus me livre, que em vez de estrangular ele matava ela a bordunadas.
Ruth - Vocês intelectuais não valem nada. Atrás desse verniz cultural esconde-se um... (Encarando-o, seriamente) Quem é você, Fernando? É você ou Jean-Paul Sartre?
FHC - Tome mais champagne.
Ruth - Preciso saber. Quem sabe eu sou a Simone de Beauvoir e não sei?
FHC - (Examinando outra foto) Essa aqui é aquela que deu aquela celeuma, lembra, quando aquele sergipano me pôs nos ombros... pensei que ele não fosse aguentar, coitado, fraco daquele jeito...
Ruth - E você gordo, que buchada de bode engorda!
FHC - Na época, fiquei constrangido. Eu tava começando. Mas sabe que depois me acostumei? Acho que deve ser uma delícia andar de riquixá... de liteira...
Ruth - Choveu telegrama de protesto. A esquerda francesa achou "exotique" demais... Até nossos amigos da Sorbonne protestaram. Acharam que você tava o próprio Chatô; parecendo aquele político que o Paulo Autran fez em "Terra em Transe"...
FHC - Não pensei em homenagear o Glauber, juro. Se me querem por no colo, me embalar, o que que eu posso fazer? Quem não gosta de ser paparicado? Até o Sartre.
Ruth - Essa aqui você tá com o frei Damião.
FHC - Eu que tive que segurar ele porque ele cai, né? Ia pra lá e pra cá... Me chamava de Fernando Collor... (Vendo mais fotos) Eu e o Lucena, eu e o Ney Maranhão, com o Mauro Benevides... o Benevides tá bem, aqui, não? Descontraído... com o Roberto Jefferson... ele ocupou a foto toda, ele é uma baleia. Quem é essa aqui?
Ruth - Dona Neuma e dona Zica, da Mangueira. Você tá com palito na boca.
FHC - Tinha acabado de comer um churrasquinho de gato. E isso aqui atrás da minha orelha? Eu tô sem óculos... o que é?
Ruth - Arruda. Não adiantou, né?
FHC - Olha, você e o Cauby!
Ruth - Nem me lembre dessa noite na churrascaria... Ele tava bêbado, babava, caía em cima de mim... (Imita Cauby) "Meu amooooor..." Fiquei toda suja de pancake –que ele usa muita base, baton, blush... Você foi lá pro escritório fazer aliança com o Chico Recarey, negociar apoio com o pessoal do Bateau Mouche... e eu é que tive que aguentar, ouvir ele cantar "Conceição" em todas as línguas, inclusive em esperanto. Foi a picanha mais dura que eu tive que engolir em toda a minha vida!
FHC - (Pega uma foto. Emociona-se) Olha eu, o Sartre, a Simone, o Zé Celso, em 62, em Araraquara... quando eles vieram fazer propaganda da revolução cubana, do "furacão sobre Cuba".
Ruth - É, foi um furação, mesmo. Não sobrou nada. Sabe que eu sentia ciúmes da Simone? Cheguei até a usar turbante para imitá-la mas o meu gênero é mais pra Françoise Sagan, tô mais pra "Bonjour Tristesse".
FHC - Falar nisso, a gente podia levar o chapéu de cangaceiro pro Regis Debray, né? Bons tempos, aqueles da Guerra Fria, onde tudo era bem definido... a gente sabia quem era quem, com quem estava lidando... (Rasga as fotos, com carinho)
Ruth - Não vai querer guardar nenhuma de recordação?
FHC - Por favor, poupe-me das suas ironias.
Ouve-se um zurro.
FHC - Que foi isso?
Ruth - É o jegue!
FHC - Tinha me esquecido dele.
Ruth - Que é que a gente vai fazer com o jegue? Não podemos levá-lo pro Quartier Latin; ainda se fosse um chiuaua... a menos que você queira passear com ele pelo Bois de Bologne.
FHC - Esse zurro tá mais parecendo... (invadem o quarto da empregada)
Ruth - Lucimar... o que que o jegue tá fazendo na sua cama!?
Empregada - Sabe o que que é, dona Ruth... é que eu e mais ele, a gente se entendeu, sabe? Tamo numa boa!
Ruth - Lucimar!
FHC - É uma versão paraibana de "Calígula"! Ainda bem que não descobriram antes, senão ia ser um novo caso Miriam Cordeiro!
Ruth - Leva ele pra sua casa. Mas não convida a gente pra batizar os... sabe Deus o que vai sair desse cruzamento.
FHC - Tudo em cima?
Ruth - Deixa eu só pegar a minha raposa...
FHC - Enquanto isso eu vou deixar um bilhete aqui pro Cebrap... Sabe qual é a minha grande mágoa, Ruth? Não ter tido seguidores... (Ruth dá um grito) Que foi?
Ruth - (Surge com uma perna mecânica) Que horror! Parecem ex-votos! Esse quarto tá parecendo o quarto da Xuxa, um tiquinho mais mórbido. (Retira muletas, pernas e braços mecânicos, coletes de aço, armações de óculos...) Dá pena por no lixo. Será que não dá pra mandar pra Ruanda, não? Deve ter gente precisando... (Grita) Lucimar, vê o que você quer aqui.
Empregada - Ôba! Vou levar uma muleta pro meu pai, uma botinha ortopédica pra minha enteada, uma perna mecânica pro meu cunhado... ih, eles vão ficar tão contentes. Mas não vou dar agora, não. Vou guardar pro Natal.
FHC - Vê o que você quer que o resto a gente manda pra fazer uma "instalação", lá no Masp.
Empregada - Obrigada, seu Henrique, o senhor é tão bom... (Senta-se na cadeira de rodas e desliza até FHC que leva um susto)
Ruth - Que foi, Fernando, viu fantasma?
FHC - Pensei que fosse a mãe do Norman Bates, em "Psicose"...
Empregada - Posso levar pra mim?
Ruth - Mas você...
Empregada - Estamos sem cadeira lá em casa... a gente assiste a novela de pé.
Ruth - Toma, leva também esses milhares de calendários impressos pela gráfica do Senado pra marcar os dias em que vocês não comem. Por falar nisso, que vamos fazer com essa tonelada de cestas básicas que você ia distribuir? Apodreceu tudo. Olha aqui, quilos de arroz, cebola, batata, tomate... Tudo podre, bichado!
Empregada - Se quiser dar pra mim eu faço uma "roupa velha"...
Ruth - Eu falei que tinha que ser tudo em lata, que nem a ONU joga lá em Sarajevo... Não podia ter gêneros perecíveis. Olha aí, puseram até brócolis! Imagine se tivesse segundo turno o estado em que estaria esse pé de alface!
FHC - Esse comitê faz tudo errado.
Ruth - Por isso perdemos as eleições. (FHC começa a rir). Sabe por que eu amo tanto você, querido? Porque está sempre rindo. (Começam ambos a chorar. De repente, FHC pára de chorar)
FHC - Pera aí. Pára a peça. (Aos bastidores) Acende a luz. (As luzes são acesas)
Ruth - Que foi?
FHC - Tem alguma coisa errada com esse texto que estamos falando... é como se eu estivesse sendo dublado.
Ruth - Eu também estou com a mesma sensação.
FHC - Não estou sentindo ele vir de dentro.
Ruth - (Baixo, ao marido) Vai ver que a gente já representou tanto que perdeu a noção...
FHC - Não, esse não sou eu. Não é o meu papel. Quem foi que escreveu esse texto?
Ruth - Deve ter sido algum xiita do PT, ou do PC do B... quem sabe o próprio João Amazonas. (Alguém na platéia informa)
Alguém - Foi o Mauro Rasi.
FHC - Quê! Mas ele não votou em mim? Ele não vota no PSDB?
(O autor levanta-se na platéia)
Autor - Votei! (constrangido) Desculpe, Fernando, desculpe, Ruth... é que não resisti; o veneno foi mais forte que a razão. Vocês me perdoam?
FHC - Você sabe que não é de minha índole brigar nem guardar ressentimentos. No fundo, achei tudo muito engraçado... ha, ha, ha. Você também não achou, Ruth?
Ruth - Vou quebrar a cara dele (Parte pra cima do autor brandinho uma perna mecânica) Traidor! Fez com a gente o que o satélite fez com o Ricupero.
FHC - Ruth, não perca a classe. É tudo que nos resta.
Autor - Olha, podem ir sossegados que eu fico aqui tomando conta do apartamento, alugo ele pra vocês por temporada, cuido dele direitinho, vocês vão ver –isso tudo, desde que não seja obrigado a comer buchada de bode, naturalmente.
Ruth - Põe o blazer que em Paris já é outono, querido.
FHC - (Suspira) Acho que vou sentir saudades...
Ruth - Daqui a quatro anos a gente volta.
Autor - Au revoir.
FHC - A bientôt.

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