São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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O que fazer, Leonel?

GIANFRANCESCO GUARNIERI

Morto eu não estou! Morto não sente a raiva que estou sentindo; onde já se viu brigar por Lexotan, bater papo com defunto... Preciso dormir
Leonel - Por... que... veio...?
Leonel, abúlico, continua fixando Gegê. Aos poucos, reanima-se.
Gegê - (Sempre afável, sorridente) Te sentes melhor agora?
Leonel - (Estende lentamente o braço, apontando Gegê, mão trêmula) És mesmo o Getúlio!...
Gegê - Gegê!
Leonel - Então, não estou louco? Não pirei? É o fim, não é? É melhor acabar logo com isso, use de toda a franqueza, é o fim, não é?
Gegê - Não, não o fim como pensas. Fim de mais uma fase, talvez! Não há um fim, um final definitivo, bem sabes. (Fuma seu charuto enchendo o quarto de uma fumaça densa) Diria que estás passando por um momento de decisiva transformação!
Leonel - (Trêmulo) Eu sabia!
Gegê - Uns mais, outros menos, mas, no fundo, todos sabem ou, no mínimo, intuem.
Leonel - Acontece que eu sei, quero dizer, agora estou sabendo... mas... mas não posso acreditar! Sinto-me o mesmo! Não mudei nada! Só me alterou esse desespero, esta sensação de desdobramento, uma espécie de vertigem mas, de resto, continuo "eu", não mudei nada! Eu sei mas não sinto essa transformação! Entende?
Gegê - (Feliz) Claro que entendo! Logo eu não haveria de entender!? Mas o obstáculo é esse mesmo. E é isso que complica, que torna mais difícil o processo! Sabemos que passamos por uma transformação decisiva, mas não compreendemos, não sentimos. E isso é doloroso! É como a luta eterna entre o velho e o novo. Um verdadeiro parto com complicações! E sem compreender, resistimos à transformação. Enfim, às vezes, com a melhor das intenções, não admitimos mudar, ou seja: entender. E agindo assim, atrasamos tudo! É o que está acontecendo contigo, Leonel!
Leonel - Já entendi e senti! Não quero atrasar mais nada. Vamos logo com isso!
Gegê - Ótimo! Eu vim mesmo pra tentar te ajudar. Sempre admirei essa tua vocação napoleônica. Acompanhei-te sempre com muita atenção e respeito!
Leonel - Obrigado! Sabe que tem toda minha admiração e afeto. (Heróico) Bem, estou pronto para a eternidade! Podemos ir!
Gegê - (Intrigado) Pra onde?
Leonel - Estou ansioso para descobrir.
Gegê - Descobrir o quê?... Ah!... Um momento, Leonel, acho que está havendo um ligeiro equívoco...
Leonel - Por favor, equívoco nenhum! Não me torture mais! O senhor passou daquela pra melhor por vontade própria, sabia o que estava acontecendo! Eu não! Foi de repente, nem sei como foi, é a primeira vez que me acontece...
Gegê - Mas não está acontecendo nada de tão extraordinário! Só...
Leonel - (Corta) Nada de extraordinário pro senhor que já está acostumado! Eu nunca passei por isso! E que abala, abala! Mas sempre enfrentei os fatos! Sempre fui objetivo e decidido!... Estou morto!... Morri, não morri?... O senhor veio me buscar... É uma honra!... Então, vamos de uma vez pra onde tenho de ir!
Gegê - Você não tem de ir a lugar algum!
Leonel - O quê?! Me condenaram a ficar aqui? Alma penada na minha própria casa? Nunca. É cruel demais! Briguei uma vida, brigo na morte! Recorro, mobilizo, luto, não aceito! Ponho uma multidão aqui rezando e acendendo velas! Alma penada, eu?!!! Nunca!
Gegê - Pára com isso, Leonel. Estás em estado de choque?! Morreste coisa nenhuma, estás bem vivo!!
Leonel - Não morri?... Então, estou completamente louco!... Das duas, uma!
Gegê - Está bem! Sendo assim, você decide!
Leonel - Um louco não decide nada, é irresponsável, inimputável!
Gegê - Escuta bem, Leonel! Não estás morto, nem estás louco. Estás apavorado porque esta tua cabeça, cheia de certezas, não aceita o simples fato, embora atípico, de estares conversando com um finado. Acontece que isso acontece porque está acontecendo. Vim pra tentar, embora isso seja terminantemente proibido pra nós, dar uma força a vocês que estão vivendo como baratas tontas. Eu já vou embora, não te preocupes. Vou indo porque, cabeça dura que és, podes ter um infarto de verdade e acabar morrendo. Mas, basicamente, só queria te liberar de qualquer compromisso com minhas idéias e ações do passado. Teu compromisso é com o hoje, com os trabalhadores, com a vida cristalina. E pra honrar esse compromisso tens de entender e sentir as transformações decisivas, sempre em nome do realmente novo e humano. Meu tempo ficou lá atrás. Batalhei conforme minha época que ajudei a formar, tentando entendê-la e senti-la. Honestamente, fiz o que pude. Orgulho-me politicamente do tiro solitário que desferi no peito e que conquistou uma década de chances para esse país se transformar, mas que vocês não aproveitaram. Livrem-se de antolhos. Além não posso ir. Falei até demais. Continuarei atento em ti, adeus! (Sempre bonachão) "Remember me".
Gegê desaparece na noite. Leonel, novamente aparvalhado, fica imóvel, abismado. A música suave dá lugar a um ruído doido de gargalhadas, vozerio e demais sons da festa distante, volta o mote "É quente, é quente, nosso novo presidente". Repentinamente, Leonel se ativa e corre para trancar a porta. Os ruídos diminuem.
Leonel - Morto eu não estou! Morto não sente a raiva que estou sentindo. Recobraram o fôlego os "Cosavostra". "Transformação decisiva" é acabar com vocês, cambada! Louco, talvez ainda não, mas estressado estou. Onde já se viu, brigar por Lexotan, conversar com o espelho, bater papo com defunto. Preciso dormir, dormir... como é que era mesmo?... Ah, "afogar no sono minha loucura". Parafraseei-me!
Pegando um dos travesseiros do chão, mergulha na cama, cobrindo a cabeça com ele. Em seguida, ouvem-se leves batidas na porta que dá para o interior da casa. Leonel não se mexe. A porta abre-se devagar e vemos o rosto de Gabriel que procura o patrão. Entra e dirige-se, pé ante pé, para a cama, sussurrando:
Gabriel - Meu caudilho... Chefinho... Tá dormindo?... Se estiver, não quero incomodar... Trouxe o analgésico, é bom tomar, o senhor dorme melhor. Acorda um pouco só... Ei, meu caudilho!... (observa o corpo na cama imóvel. Preocupa-se. Abaixa-se para ouvir a respiração) Ei, chefinho! Tá respirando?... Esse travesseiro na cabeça faz mal, viu? Afoga!... Brinca, não, meu caudilho... eu sou nervoso, o senhor sabe! (Sacudindo-o) Agora o senhor vai acordar!
Leonel não reage às sacudidelas. Apavorado, Gabriel arranca-lhe o travesseiro do rosto. Horrorizado, observa os olhos abertos do patrão, a língua aparecendo entre os lábios, todo ele imóvel!
Gabriel - (Aos gritos) Patrão!... Patrão! Tá morto, patrão?... Mas não é possível! Todo rabugento ainda há pouco! Agora tá morto! Bah! Que burrice! Se afogar com o travesseiro!... E agora, patrão! E nós? E nós?
Leonel - (Sentando-se na cama) Vocês que se virem, pombas! Já fiz minha parte.
Gabriel toma um mega susto. Aterrorizado, corre para a porta.
Ouve a gargalhada do chefe, estanca, ainda apavorado.
Leonel - Susto por susto! Fui à forra!... Bem feito!... Quem manda tentar acordar quem pediu remédio pra dormir?
Gabriel - (Quase sem fôlego, pernas bambas) Quase que o senhor mata é a mim! Brincadeira mais estúrdia! Sou terceira idade, pô! Tava certo que tinha morrido... Bah!
Leonel - Morrer não morri, mas estou um pouco louco... Tu nem imaginas!...
Gabriel - O que aconteceu?
Leonel - Ih! Nada!... Minha cabeça que virou mingau!
Gabriel - Deve ter virado mesmo, pra me dar um susto desses... Não ri, não, patrão, ainda estou com as pernas bambas!
Leonel - Senta.
Gabriel - (Obedece) Ah!... Está passando!... Vai tomar o comprimido, não?
Leonel - Deixa aí, Gabriel, depois eu tomo. Vai dormir...
Gabriel - Depois de um susto desses?
Leonel - Então não dorme mas vai embora. Eu preciso dormir.
Gabriel - Mais que justo. Mas patrão, já que não morreu, posso lhe fazer uma pergunta?
Leonel - O que é, Gabriel?
Gabriel - Já pensou bem? Conseguiu responder à pergunta do Lênin? Que fazer?
Leonel - Francamente! A essa hora da madrugada, com a puta zorra que os "Cosavostra" estão fazendo, vai me perguntar "o que fazer"?
Gabriel - Queria saber pra poder tomar as providências. Vai continuar ou desistir?
Leonel - Vou te cobrir de porrada, isso sim!... Chispa daqui!
Gabriel - Mas é importante! Se continuar, as providências são umas, se desistir, são outras!...
Leonel atira um copo nele.
Leonel - Fora! Fora!... Eu quero dormir! Dormir! Dormir pra poder pensar!
Gabriel protege o rosto com os braços e vai saindo de costas.
Gabriel - Não vai esquecer do comprimido... E é bom tomar mais uns três Lexotans!
Leonel - (Atirando sobre o outro os objetos que encontra à mão) Energúmeno! Energúmeno! Fora daqui!!
Enquanto Gabriel se retira, esquivando-se dos projéteis.
Cai o pano.

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