São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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O que fazer, Leonel?

GIANFRANCESCO GUARNIERI

Vocês vão ver a festa é nos próximos quatro anos! Vão descobrir o que é mesmo o real! Vaquinhas de presépio!
Leonel - (Dando-lhe uma potente cotovelada) Isso é jeito de falar? Estás exagerando, Gabriel!... Nunca mais vou te chamar de Gabi! Não mereces a xará que tens! Grosso! E o que é que tu entendes de anjos, hein, energúmeno?!... Vai, some daqui! Chega de massagem, não adiantou nada! Chispa, vai!
Gabriel - (Simulando uma grande humilhação) Eu vou... Desculpe!... Já, já, trago um analgésico pro senhor...
Gabriel vai se retirando cabisbaixo sob o olhar de Leonel cuja expressão, aos poucos, se abranda.
Leonel - Gabriel (O outro pára junto à porta e aguarda de costas para o patrão) És um velho sonso e grosso mas, assim mesmo, gosto de ti!
Gabriel volta-se para ele com um largo sorriso e cantarola gozador:
Gabriel - "Sentimental eu sou..." (Com um aceno, sai.)
Leonel deita-se na cama. Comprime as têmporas doloridas e, só então, percebe que a porta da sacada está aberta. Vai até ela ouvindo o som da música suave ao longe. Olha para o céu estrelado, respira fundo. Depois, intrigado, examina o trinco da porta...
Leonel - (Para si) Como é que essa porta foi abrir?! Eu tranquei muito bem trancada! (Examina a varanda e estende o olhar pelo prado em frente. Sem ruído, o cintilar breve de alguns fogos de fim de festa. Sorri sarcástico e murmura não sem certo despeito) Fôlego curto, cambada! Alegria mais raquítica! Vocês vão ver a "festa" é nos próximos quatro anos! Não se engana um povo impunemente! Logo, todos vão acabar descobrindo o que é mesmo o real! Cambada de conluiados! Cosavostra! Vaquinhas de presépio! (Torna a imitar o refrão, voltando para o quarto, dedos indicadores espetando o ar) "É quentchi! É quentchi! Nosso novo presidentchi!" (Falando alto em direção à sacada) Oh, megalômanos! Só para não dizerem que não falei do óbvio: "Nada como um dia depois do outro"! Festeja, festeja, vitorioso contendor! A partir de agora começará o teu calvário!... Com todas as mordomias, evidentemente...! (Vai apagar uma das luzes que deixara acesa e detém-se diante do espelho pendurado na parede, acima da cômoda. Observa a própria imagem) Está abatido, velho Leonel! Cicatrizes de batalhas!... Dor no corpo..., saudades na alma. (Imitando um repórter, caricato) Governador! Governador! O senhor está muito deprimido com a derrota? (Numa autocaricatura) Como poderia ficar deprimido diante de uma vitória da manifestação popular? O povo exerceu seu direito fundamental em uma democracia –o voto– em uma eleição que envolveu a escolha dos que ocuparão os cargos políticos mais importantes deste país. Conquistei o privilégio, mais uma vez, de ter sido convocado pelo meu partido para disputar a Presidência da República. Cumpri meu dever de cidadão visceralmente dedicado a encontrar soluções para os mais candentes problemas do nosso povo. Por que deveria estar deprimido? Não direi deprimido, mas seriamente preocupado, temeroso, angustiado deve estar o candidato escolhido. As tarefas que tem pela frente são das mais árduas e espinhosas. Desejo-lhe boa sorte. O povo não mais admite ser enganado. Qualquer desacerto poderá ter consequências catastróficas. (Aplaude, imita os gritos de uma multidão exultante; ele próprio agradece, levantando os braços, punhos cerrados. Volta a caricaturar o repórter) O senhor pensou alguma vez, seriamente, que poderia vencer a eleição? (Respondendo) Eu? Não, nunca! Disputei só de farra, é meu hobby! (Como repórter) Então, vai se candidatar também nas próximas? (Responde gentil, sorrindo) Claro, meu querido, pra poder te mandar à merda mais uma vez! (Irritado, dá um tapa na tampa da cômoda) Se dependesse de charme e presença de espírito, eu ganharia essa eleição disparado! (Caindo em si) Pára com isso, Leonel! Já pra cama; afoga no sono o teu desgosto! (Comentando a própria frase) Hum... vai bem!... Um leve toque shakespeareano. (Apaga uma das luzes e dirige-se à cama.)
Ouve-se uma gargalhada. Leonel pára assustado.
Leonel - (Voz um tanto trêmula) Gabriel?... És tu, Gabriel?
A gargalhada transforma-se em um risinho maroto... Rapidamente, Leonel pega o revólver sobre a cama. Cuidadoso, pé ante pé, dirige-se à sacada.
Leonel - (Pigarreia para clarear a voz) Quem está aí? (Silêncio. Insiste ameaçador) Quem está aí?!
As luzes enfraquecem até apagar totalmente. Emoldurado pela porta, contra a tênue luminosidade da noite, percebemos o vulto de um homem baixinho, gordo, de bombachas, a brasa de um charuto brilhando na semi-escuridão. Leonel, com surpreendente agilidade, recua, protegendo-se junto ao leito onde se acocora, revólver em punho.
Leonel - Nem mais um passo, estou armado!
Gegê - Que é isso, companheiro?!
Leonel - Mãos pra cima!... Já!
Gegê - Ora, vamos, Leonel!... Por favor...!
Leonel - (Nervosíssimo, gagueja) Ma-ma-mãos pra cima!
Gegê - (Obedecendo) Tudo bem... Tudo bem!
Leonel - Agora vai falando! Quem és tu? Quem te mandou? É um atentado, não é?
Gegê - Essa, não, Leonel, não amola! Pelo amor de Deus, atentado pra quê?!
Leonel - Cala a boca! Vai falando!
Gegê - Difícil! Calo ou falo?
Leonel - Fala! Afinal, o que é que você quer?!
Gegê - Nada!... Uma simples visita...
Leonel - Pela última vez, quem é você?
Gegê - Não estás mesmo me reconhecendo, Leonel?
Leonel levanta-se vagarosamente, expressão de estupor.
Gegê - Quem sabe, com um pouco mais de luz... (As luzes se acendem)
Leonel - (Estupefato) Impossível!!
Gegê - (Bonachão) "Há mais coisas entre o céu e a terra do que, etc, etc, etc"
Leonel fica paralisado. Com esforço, tenta falar mas só consegue sons desconexos. Pigarreia, bufa. Finalmente, articula como em um sopro:
Leonel - Ge... getu... Getúlio... Vargas!?
Gegê - (Abrindo um belo sorriso) Claro! Mas por que não me chamas, como fazia o povo, carinhosamente, de Gegê?
Leonel - (Aterrorizado, emite um verdadeiro urro. Sacode violentamente a cabeça. À beira da histeria, falando com incrível rapidez) Eu sabia! Eu sabia! Eu sabia! Tinha certeza que ia acabar acontecendo! Enlouqueci! Alucinações! Eu sabia! Como um alcoólatra! Pronto, aconteceu, estressei, abusei, pirei, me danei. Mas quem aguenta, quem pode aguentar, quem resiste? Alguém consegue? Abusei, demais pra minha cabeça, minha idade, meu estômago! Tudo embolado na minha cabeça, idade, estômago, ideal, ambição, vitória, tiro, golpe, luta, exílio, golpe, tiro, ideal, real, tiro, droga, bicho, tiro, golpe, globo, golpe, verde, amarelo, branco, azul, marinho, golpe, amor, morte, poder, ideal, real... Ah!!...
Falta-lhe o ar, interrompendo a enxurrada de palavras. Arqueja. Com enorme sacrifício, procura dominar-se. Gegê observa-o entre contrafeito e compungido.
Leonel - (Olhos fechados, arquejante) Que miséria!... Pifei!... Quieto, Leonel, quieto. Isso passa. Tem de passar! Respira, respira fundo. A mente domina tudo, até a si mesma. Isso, controla as batidas do coração. Agora, abre os olhos devagar e vais ver que tudo não passou de uma breve alucinação, devida ao estresse. (Lentamente, abre os olhos, de frente para o público) Devagar... Devagar...
Abre os olhos, pisca repetidamente, ergue bem o corpo e, decidido, volta-se, para a porta onde viu Gegê... Que lá permanece e que abre os braços em um gesto de resignação e impotência.
Leonel - Não! (Fica paralisado, até desabar sentado na cama, olhar aparvalhado fixo em Gegê.)
Gegê - (Um tanto ofendido) Se eu pudesse imaginar que ia reagir desse modo, não teria vindo!
Leonel - (Robotizado) E... como... queria... que... reagisse...?
Gegê - Como, eu não sei!... Menos desse modo! Confiei no teu equilíbrio, bom senso... Até mesmo no teu ceticismo. Para mim era mais provável que me desses um tiro, de cara, do que reagires dessa maneira. Afinal, és culto, escolado! Mas não! A primeira coisa que faz é se apavorar, como uma beata, e duvidar da própria sanidade mental!... Francamente!

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