São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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O último palco do diálogo

VACLAV HAVEL
ESPECIAL PARA O "LIBÉRATION"

Pela primeira vez na história da humanidade, uma civilização global e única se estende sobre nosso planeta. Qualquer evento, aconteça onde acontecer, terá consequências favoráveis ou nefastas em toda parte e para todo o mundo. É claro que essa civilização comporta um grande número de nações ou etnias com costumes e tradições diversos, com grande número de conjuntos culturais, grandes e pequenos, com muitos diferentes universos religiosos, com vários tipos de culturas políticas diferentes.
Ao mesmo tempo, parece que quanto mais estas comunidades múltiplas se aproximam, sob a pressão da civilização atual, o quanto mais são forçadas a aceitarem valores comuns e um comportamento único, mais se manifesta sua necessidade de reforçar a defesa de sua identidade nacional, racial, cultural e de seus valores tradicionais.
Muitos dos conflitos que ameaçam o mundo de hoje podem ser explicados exatamente por esse fenômeno: quanto mais nos aproximamos uns dos outros, mais claramente nos damos conta de nossas diferenças. E, ao mesmo tempo, vivemos o desabamento de diferentes sistemas políticos artificiais. Quer estes sejam resultado do colonialismo ou da bipolaridade, o fato é que o mundo está em processo de tornar-se realmente multicultural e multipolar e busca uma ordem nova, justa e apropriada à sua época.
A consequência disto tudo é uma tensão dramática no mundo de hoje. Em diversos pontos de nosso planeta, hoje, existe oposição à convivência de uns com os outros. No entanto, nossa única esperança consiste precisamente em conseguirmos chegar a essa convivência.
Dizer que a televisão, o cinema e outros produtos modernos colocam em dúvida a importância do teatro é falso. Eu diria que, pelo contrário, é o teatro que, melhor do que qualquer outra expressão artística, permite trazer a claro –de forma insistente– tudo que é sombrio e ameaçador, e ao mesmo tempo tudo que é luminoso e portador de esperanças.
Pois na civilização desumanizante e técnica de hoje, o teatro é uma das ilhas importantes de autenticidade humana. E se não quisermos que nosso mundo termine mal, é exatamente o teatro que precisamos absolutamente defender e cultivar. Afinal de contas, o retorno de uma subjetividade humana insubstituível, de uma personalidade humana concreta, em suma, da consciência humana, é o que necessita esse mundo de megamáquinas e megaburocracias anônimas.
Só o homem, com sua responsabilidade renovada e seu sentido das concordâncias, pode fazer frente aos perigos que ameaçam o mundo. E nenhuma rede de computadores, por mais sofisticada que seja, pode substituí-lo. A esperança do mundo consiste na reabilitação do ser humano.
É verdade que o teatro não é apenas uma forma de expressão entre outras. É a única forma de expressão em que o homem se dirige a outro homem, cada dia, agora e sem parar. Graças a isso o teatro não é apenas o espaço onde se narram histórias. É um espaço de encontro entre homens, um espaço de existência humana autêntica que se esforça para prestar testemunho do mundo, dela mesma; é um espaço de diálogo vivo, único e inimitável, que fala da sociedade e de suas tragédias, do homem, de seu amor, de sua dor e de seu ódio. O teatro é um lar espiritual da comunidade humana, o ponto de cristalização de sua vida espiritual, é um espaço de sua liberdade e de seu contentamento.
Na civilização técnica global, formada por muitas culturas diferentes e ameaçada por seus conflitos, o teatro é –acredito integralmente nisto– o construtor da esperança e uma lupa através da qual entrevemos o futuro. Não porque ele mostre o mundo melhor do que ele realmente é, mas porque possibilita a esperança de assistirmos ao renascimento da humanidade. Pois se o teatro é o espaço de comunicação livre entre homens livres sobre o mistério do mundo, ele mostra o caminho que leva à tolerância, ao respeito mútuo, ao respeito pelo milagre do ser.

Tradução de Clara Allain

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