São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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Flying down to Rio

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Motivo de horror e fascínio para leitores de tragédias ou de apreensão sincera para os que acompanham sua crônica diária de violência, o Rio passou a encarnar o símbolo da degradação urbana e da insegurança no Brasil.
O cenário, desolador, frequenta as páginas dos jornais e os noticiários da TV de uma forma peculiar: surge aos olhos do país sob o signo da aberração. Como se tudo aquilo fosse uma catastrófica exceção, sem paralelo no resto da sociedade e explicações na história recente do país.
Desistoricizada e transformada em espetáculo, a violência do Rio, de certa forma, exorciza fantasmas em São Paulo, tranquiliza províncias pelo Brasil afora e reforça os preconceitos que fundam o apartheid social brasileiro.
É contra esta banalização da estupidez e da divisão social que "Cidade Partida", livro do jornalista Zuenir Ventura, se ergue. Não como exercício de retórica, mas como relato de uma interessante experiência pessoal e jornalística –que parte da convivência, ao longo de dez meses, com moradores da favela de Vigário Geral, para tentar flagrar no passado da cidade aquilo que se transformou em adubo da violência.
Zuenir fez o caminho inverso ao escolhido pela cidade rica: em vez de dar as costas à favela, foi lá ver o que se passa. E o que se passa é de estarrecer.
No vácuo de um Estado contaminado pela corrupção e gerido pela irracionalidade populista –que se apresenta aos marginalizados unicamente sob as vestes do arbítrio policial– floresce o poder do tráfico, cujas regras, ao menos mais claras do que as da polícia, impõem-se no território. Note-se: a favela não é nem a produtora nem a consumidora da droga. É, como diz Zuenir, apenas a "varejista" de um comércio que nasce fora do morro e se capitaliza no asfalto.
Não será com tanques na favela e grades em suas casas que os cariocas conseguirão mudar a cidade. A invasão que o morro pede é, nas palavras do sociólogo Betinho, uma invasão de cidadania: nada de blablablá esquerdoso, mas de escola, assistência, saúde etc.
Em vez de extirpar o morro da cidade, o que é impossível, deve-se aproximá-lo dos benefícios urbanos e sociais. E não por caridade, mas em nome de uma política que busque a solidariedade necessária para uma ação de combate ao crime –cuja desarticulação, igualmente, não será fruto de invasões cinematográficas, mas de um trabalho corajoso de identificação da máfia que articula setores da polícia, do Estado e das elites em torno do comércio de drogas, do contrabando de armas, da contravenção etc.
Ou o Rio entende que precisa urgentemente de uma nova política para enfrentar os problemas da cidade ou naufragará. E essa nova política –que se esboça nos debates do movimento Viva Rio– certamente terá de ir muito além do ataque ao tráfico e à corrupção.
É uma revolução cultural que se impõe. Uma revolução de costumes, de hábitos, de comportamentos. Uma revolução capaz de enxugar o caldo de cultura que favorece a violência, o desprezo pela lei e o desrespeito aos direitos: a velha malandragem, o jeitinho e a esperteza que os cariocas elegeram como "virtudes" da cidade não merecem, a esta altura, mais do que a lata de lixo.
Será preciso reorganizar valores –o que, sem dúvida levará tempo. Tanto quanto foi necessário para que as coisas chegassem onde chegaram.

Ilustração: "Copacabana", 1985, fotografia de Marc Ferrez

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