São Paulo, terça-feira, 4 de outubro de 1994
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Vara curta para um grande salto

ERNESTO LOZARDO

O Plano Real representa um conjunto de medidas emergenciais de curto prazo para eliminar uma modalidade da inflação: a inercial. Certamente continuaremos a ter inflação, mas com taxas mensais reduzidas.
Uma vez alcançado esse objetivo, os passos seguintes, a médio prazo, serão os de organizar a economia, redimensionar e sanear financeiramente o Estado. Este plano está obtendo um grande sucesso. É o plano mais civilizado que já tivemos para combater a superinflação.
Contudo, até o final de 94, o jogo do real não estará ganho. A vitória dependerá, de um lado, do compromisso social com o plano por parte dos empresários, no tocante à reposição salarial nas datas-base, sem incorrer em aumento de preços e, de outro, haverá necessidade de manter e implementar uma política monetária séria para conter o consumo e a aceleração do crescimento da produção.
Isso seria necessário para que o próximo governo possa dar os passos seguintes sem traumas futuros na relação entre patrão e empregados e a comunidade financeira internacional.
No período anterior ao Plano Real, grande parte da classe empresarial aumentou seus preços muito acima da taxa média praticada no mercado. O pretexto foi de que poderia ocorrer um congelamento de preços, o que comprometeria suas margens de lucro. Mas, cada um de nós já sabe interpretar essas velhas estórias dos ``amantes" da inflação.
O resultado foi a perda real dos salários da classe trabalhadora, nos meses anteriores à entrada da nova moeda. O importante nesses próximos meses era os empresários saberem administrar com responsabilidade social suas margens de lucro, repondo também, e corretamente, as perdas salariais ocorridas nos últimos meses sem aumento de preços.
Se contarmos com esse apoio responsável, a política monetária não será objeto de demagogia e o Plano Real alcançará seus objetivos.
A política monetária adotada no início do real objetivou que, com o aumento de 100% do compulsório sobre o acréscimo nos depósitos à vista dos bancos e da poupança, seria suficiente para manter o mesmo nível de consumo dos meses anteriores.
A população, desprotegida da correção monetária, percebeu que o poder de compra de sua renda havia se estabilizado: previsibilidade de gastos do orçamento familiar é tudo o que qualquer classe social precisa para viver um pouco melhor.
Esse ganho imediato de renda, junto com a expectativa de sua continuidade, tem motivado a população a comprometer parte de sua renda futura, antecipando o consumo via crediário.
É importante lembrar que a expansão do crediário nestes próximos dois meses, somada ao 13º salário (novembro e dezembro), não somente anteciparão o consumo das classes mais pobres, mas também poderão comprometer o curso das metas monetárias.
Também é preciso atentar que a entrada da classe média nas compras de final de ano pressionará a formação de estoques e a elevação de preços. Tudo isso ocorrerá por conta da estabilidade da moeda.
Mas como não estamos acostumados a isso poderemos incendiar o Plano Real por desconhecimento de causa.
Nesse contexto, e no curto prazo, somente duas medidas poderão conter qualquer escalada de preços por parte dos ``amantes da inflação": a atual abertura das importações em mais de 5.000 itens e a política de contenção da expansão da moeda e do crédito ao consumo. Essas duas medidas são muito eficazes para evitar uma nova precipitação na armadilha da superinflação indexada.
A abertura às importações representa a melhor arma para combater tanto as possibilidades de ágio de preços como a formação de estoques especulativos por conta do aumento do consumo. Face aos acordos no âmbito do Mercosul, as reduções das alíquotas de importações sinalizam uma tendência da economia de mercado brasileiro: mais competitivo e com preços mais estáveis.
Numa economia sem déficit público, importar será o melhor mecanismo para terminar com a ineficiência e alto padrão de custos operacionais da produção de bens no país. Na medida em que o país se torna mais exposto à concorrência de produtos internacionais, o consumidor ganha, o nível de emprego aumenta e as taxas de juros permanecem baixas.
O aperto monetário aumentando o compulsório dos bancos e da poupança, de 20% para 30% sobre o estoque dos seus depósitos a prazo, foi acertada, mas exige cuidados por parte do Banco Central.
Essa medida visou restringir a expansão do crédito ao consumidor e a expansão do financiamento do capital de giro das empresas.
Como o real propiciou ganho real na renda familiar, o consumo irá crescer de qualquer maneira. Com juros elevados, o consumo cairá, mas poderá faltar produtos, o que levaria a um aumento de preços. As importações poderão por um freio nessa possibilidade.
Com o aumento da renda familiar das classes de baixa renda e os ganhos financeiros da classe média pelas aplicações nas elevadas taxas de juros do mercado financeiro, o crescimento do consumo será inevitável no final deste ano.
De sorte que, não acreditamos que a redução da quantidade de moeda no sistema possa representar um seguro suficiente contra a expansão do crédito para os elevados gastos que ocorrerão no final do ano.
Cremos ser necessário e suficiente reduzir, drasticamente, os prazos de financiamento dos crediários para inibir, temporariamente, o consumo crescente.
É fácil observar que todas essas medidas implicarão em riscos para o sistema financeiro, particularmente, para os bancos de pequeno e médio portes, sejam eles públicos ou privados.
Esse bancos, há muito tempo, estão financiando suas carteiras de títulos públicos de longo prazo, e de baixa liquidez, com recursos de curto prazo no mercado interbancário, pagando as maiores taxas de juros no mercado financeiro. Fica claro que existe um divórcio de prazos e taxas de financiamento que poderão exigir a intervenção do Banco Central nessas instituições.
É preciso lembrar que qualquer instabilidade no sistema financeiro ocasionará pânico nos aplicadores, conduzindo-os para o mercado de bens de consumo, como forma de obter poupança segura. Nesse caso, não haverá política monetária ou de importações que possa frear o consumo ou o repique para cima da inflação. O Plano Real fará água.
Diante desse provável cenário, o Banco Central deverá agir com muita flexibilidade no atendimento desses bancos a fim de que o setor possa se adaptar sem grandes traumas.
A razão desse descompasso no financiamento de muitos bancos deve-se ao fato de que enquanto existia uma elevada taxa de inflação mensal o sistema financeiro conseguia financiar suas carteiras de risco, com ganhos na aplicação da moeda que ficavam flutuando durante dois ou três dias na conta corrente, perdendo, diariamente, seu valor.
Com a queda da inflação, aquele ganho financeiro dos bancos desapareceu e eles perderam a liquidez.
Na verdade, caso não sejam amparados pelo Banco Central durante um curto espaço de tempo para adequar suas carteiras de títulos pouco líquidos, lembrando que até mesmo o Banco do Brasil se encontra nessa situação, o setor bancário cairá como se fosse um jogo de dominó e com ele irá o Plano Real.
É importante atentar ainda que numa fase de moeda forte, o processo de abertura às importações oferece muito menos riscos à economia do que a liquidação de bancos estaduais e privados.
Creio que a solução passe por um processo de securitização do passivo dos bancos; a troca do passivo por títulos novos com a possibilidade de serem convertidos em ações de estatais de capital aberto ou privatizáveis.
O real é uma vara muito curta, mas indispensável, para realizar o salto que a nação precisar dar rumo à estabilidade, com crescimento e progresso socioeconômicos.
É importante resgatarmos o orgulho de sermos brasileiros, numa terra de oportunidades para todos, sem esse nível de violência urbana sob o qual vivemos, numa economia que possa crescer sem inflação e miséria.
A nós, que acompanhamos o desenvolvimento do Plano Real, cabe apoiá-lo, criticamente, a fim de que ele possa espelhar o futuro que desejamos. É uma questão apenas de bom senso e de patriotismo.

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