São Paulo, terça-feira, 4 de outubro de 1994
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Comédias enfrentam personagens da realidade

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Não foi uma apresentação, um espetáculo, mas uma leitura dramática, um evento. Ainda assim, vale o comentário, porque não é toda hora que cinco dos principais autores de teatro do Brasil escrevem sobre personagens vivos, da política. Aliás, não é de agora que se espera algo do gênero, da dramaturgia brasileira.
O momento é de crescimento do teatro, não só no Brasil e não só de público, em função de uma certa busca de idéias, pensamentos. Foi o mesmo ambiente que, nos Estados Unidos, permitiu o surgimento de uma peça como ``Angels in America", de Tony Kushner, em que o personagem que se sobressai é Roy Cohn, político de extrema-direita, de uma importância de protagonista na história americana recente.
``No que Vai Dar Isso" é dos melhores exemplos da singularidade de um autor como Plínio Marcos. No papel, publicada no último Mais!, a peça é algo atemorizante, tenebrosa até. No palco, ainda que em leitura dramática, é de uma comicidade reveladora. Reveladora é a mais correta descrição para o texto. O dramaturgo, que está voltando a escrever, para felicidade do teatro brasileiro, consegue uma imagem cristalina da política brasileira atual, com um dado da realidade, pouco citado, como aquele de que Enéas é o maior vitorioso. E outros, ainda, como o poder financeiro das seitas, ou a falta de um bruxo para desenvolver o neofascismo do Prona. Uma realidade que é apresentada com um humor doloroso, violento, com passagens destruidoras sobre Jânio, Fernando Henrique, Quércia, com castigos até para Lula, chegando a peça a ecoar, não por acaso, o coaxar das rãs de Aristófanes, também cômico e violento, dois milênios atrás.
``Que Fazer, Leonel?", de Gianfrancesco Guarnieri, tem sua grande passagem, nem tanto no personagem Leonel Brizola, mas naquele que vem para assombrá-lo, Getúlio Vargas. Na leitura dramática, o autor fez ambos. Quando atingiu, por fim, a cena em que Getúlio passa uma espécie de segundo testamento, agora só para aquele que seria o seu herdeiro, Leonel Brizola, o dramaturgo mostra que continua com intuição para os personagens históricos. Como testamento, ele é sincero, definitivo e inteiramente atual, de interesse atual. Quanto a Leonel Brizola, o personagem, talvez o problema seja que o outro, o político, não é mesmo um personagem do Brasil de hoje. Aliás, é o que sugerem os conselhos de Getúlio, o fantasma. Por outro lado, o humor surgiu no domingo nem tanto por efeito do texto, das palavras, mas pelo grande ator que é Guarnieri, o que se percebe até mesmo em leitura. Mas o texto tem um certo humor, em referências de hoje ou em situações, principalmente naquela do aparecimento do fantasma de Getúlio, que assusta Leonel Brizola a ponto de levá-lo à conclusão, histérico: ``Eu tinha certeza que ia acontecer. Enlouqueci."
``Buchada de Bode Nunca Mais" mostra Mauro Rasi de volta ao besteirol, e não há coisa mais engraçada. Não há palavra, não há alusão que não leve ao riso, na peça. Na leitura, a presença de Vera Holtz como Ruth Cardoso e depois como a empregada do casal ampliou o humor, que chegou a paralisar o evento, sob gargalhadas. Seria ocioso e extenso demais repetir as passagens mais divertidas. São quase todas e sempre tendo como base o jogo de palavras. Não é tanto a situação que leva ao riso, como foi o caso de Guarnieri, mas o próprio escracho verbal. Intermitente, desrespeitoso, gozador, em que não cabe cuidado, por exemplo, com o que seria politicamente correto, como acontece quando critica, aos gritos de ``baiano nojento", o maior aliado de Fernando Henrique, pela voz da personagem Ruth Cardoso. Tudo é pretexto para as piadas, desde a alta cultura francesa, até as imagens da campanha, em avalanche de referências. Para quem só tinha visto o Mauro Rasi da última fase, de um besteirol arrependido, sua volta ao besteirol franco é uma revelação.
``O Céu da Pátria", de Jandira Martini e Marcos Caruso, responsáveis também por ``Porca Miséria" e ``Sua Excelência, o Candidato", é talvez a peça mais ambiciosa, formalmente, das quatro. Dedicada ao dramaturgo Artur de Azevedo, não poderia resultar em outra coisa a não ser uma revista, modelada nas revistas-de-ano de um século atrás, ainda que com a temática de um período fechado como uma eleição. Lula derrotado é o seu tema, mas a peça parece anunciar mais. Com personagens como ``Ordem", ``Constituição" ou ``Deus", o que era próprio das revistas, ela tem como protagonista, na verdade, o Brasil. Com diálogos rimados e um tom de sátira, com quadros diversos, cômicos e musicais, que mesmo na leitura deram oportunidade a aplausos, é uma forma de tratar dos fatos, das notícias do país no palco, com arte. Era o que se fazia, da mesma forma, com revistas como ``Rio de Janeiro em 1877", de Artur de Azevedo. É o que se faz, de outra forma, com ``Angels in America". Espelha-se a realidade, com personagens tirados dela.

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