São Paulo, terça-feira, 4 de outubro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Gerald Thomas acha feio o que é espelho

LUÍS ANTONIO GIRON
ENVIADO ESPECIAL A GRAZ (ÁUSTRIA)

Gerald Thomas, 40, estreou no último sábado em Graz (Áustria) a ópera ``Narcissus", que fez em parceria com o compositor suíço Beat Furrer, 40, por encomenda do festival de vanguarda Outono Estírio, um dos mais importantes da Europa no gênero.
A obra recebeu oito minutos de aplausos do público de convidados da Ópera de Graz.
``Narcissus" volta a ser apresentada amanhã, sexta e dia 12. No ano que vem, excursiona pelos EUA e pela Europa. O CD do espetáculo deverá ser lançado também em 1995, pela gravadora alemã Deutsche Grammophon. Thomas prepara duas óperas para o ano que vem: ``Zaide", inédita de Mozart, com música completada pelo italiano Luciano Berio, a estrear em Praga em setembro, e ``Doktor Faustus"', de Busoni, para outubro no Outono da Estíria. Para 96, promete ``Tristão e Isolda" em ritmo de samba-enredo.

Folha - Como você elaborou o libreto de ``Narcissus"?
Gerald Thomas - Trabalhei com as ``Metamorfoses" de Ovídio e o romance ``O Inominável" (The Unameble), de Samuel Beckett. Retirei de Ovídio frases beckettianas que lidam com a distorção do rosto, a incapacidade de descrever uma situação e a incapacidade de relacionamento. Mas o fundamento é becketiano.
Minha contribuição é enxugar e escolher trechos em terceira pessoa falados por Narciso quando se refere a si próprio. Fixei a fala de Narciso em alemão e a de Eco em latim. Beckett lia os clássicos para se inspirar. ``O Inominável" pode ser descrito como ``a triste trajetória de Narciso pelas metamorfoses da vida". Na ópera, Narciso está na condição do solista que, ao fim, tem que se juntar ao coro.
Folha - Em ``Narciso" há uma proliferação de duplos. Por que sua obsessão pelo tema?
Thomas - É a história da minha vida. Sou brasileiro, inglês, americano e alemão ao mesmo tempo. Essa coisa de não ter raízes não é tão bom quanto as pessoas pensam. Para cada momento de felicidade existe tristeza porque não adianta ser vitorioso sozinho. Existe um idealismo humanístico em mim. Uma grande alma não é narcisista. Apesar de eu ter uma carcaça narcisista, minha alma humanista é contrária.
Folha - De que forma se realiza a autoparódia na sua ópera?
Thomas - Meu nome excedeu minha capacidade profissional. Virou um ícone da megalomania. Dizem que eu apareço mais que minhas peças. Se isso é assim, tenho alguma culpa no cartório. Deixei claro em 1992 que não ia mais fazer teatro sério.
Folha - Como você critica a arte contemporânea na ópera?
Thomas - O propósito da arte experimental foi digno quando começou. Mas aí apareceram as instituições tipo Documenta de Kassel e aquilo que surgiu como experimento que devia ser vivido e jogado fora virou obra de milhões de dólares. A arte virou objeto de metáforas particulares, pessoais. O artista de hoje acha que basta ele entrar no palco para ser aplaudido. Este é o motivo do fracasso da arte contemporânea. Na ópera, esse fracasso está expresso na imagem do toureiro. Narciso quer ser um toureiro, que aparece desafiando um touro impotente. De repente, touro e toureiro são embalados e expostos num museu.
Folha - E seu ``Tristão e Isolda"?
Thomas - A ópera terá lugar numa favela carioca. Tristão é carpinteiro e compositor de escola-de-samba. Isolda, lavadeira. Tristão fica sabendo que existe a ópera, identifica-se com ela e resolve compor um samba-enredo. O espanhol Antonio Mayo, que vai reger a orquestra, achou ótima a idéia de alterarmos a partitura de Wagner para ritmo de samba.

Texto Anterior: Brioche; Croque Monsieur; Bijou; Roda-gigante
Próximo Texto: Ópera critica o 'yuppismo'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.