São Paulo, terça-feira, 4 de outubro de 1994
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O Brasil precisa do PT

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE

Em sua tese sobre as eleições presidenciais de 1989, André Singer levanta uma hipótese pertinente: a presença do PT no quadro partidário nacional organiza o processo político de fato; foi a presença do PT, como partido capaz de disputar e exercer o governo, comprometido com um programa de reformas de amplo apelo popular, e dotado de uma militância aguerrida e bem enraizada, que obrigou a direita a reciclar sua estratégia, dispondo-se a apoiar um candidato de centro-esquerda, com um projeto de estabilização econômica e política de longo prazo. Mais do que isto, o PT estruturou o quadro partidário: as demais siglas foram obrigadas a se demarcar com relação ao PT.
Tudo isso derivou da presença de um partido de esquerda competitivo. Uma regressão do PT ao velho padrão não-competitivo da esquerda brasileira teria dois efeitos imediatos. Um seria a diluição de seus quadros mais moderados em diversas siglas, contribuindo para descaracterizá-las. Outro seria a orfandade das alas menos politizadas e o descontrole das mais radicais.
O PT vive hoje uma síndrome de Pirro. Como se sabe, a vitória de Pirro é aquela cujos custos são tão altos que, ao se repetir, levaria à derrocada final. Pois existe também a derrota de Pirro, aquela que, não sendo entendida a tempo, não permite preservar as próprias forças e, não proporcionando lições, é destinada a repetir-se, cada vez com custos mais altos.
Tal parece ser o caso da derrota do PT nas eleições de 1989, quando chegou ao segundo turno com menos de 20% dos votos, mas comportou-se como partido hegemônico. Alegando ser portador de um mandato das urnas, recusou-se a qualquer tipo de concessão programática. Atribuiu sua derrota no segundo turno às faltas do adversário, acusando o capital e os poderosos de defenderem o próprio poder.
Como decorrência, o PT abordou as atuais eleições com o triunfalismo de partido hegemônico. Entretanto, continuava minoritário, sua bancada poderia no máximo alcançar 20% da representação nacional, e isto com base em setores bastante restritos e privilegiados da sociedade brasileira. Assim sendo, não poderia aspirar a governar sem a adesão de partidos rivais e o assentimento de seus adversários. Ao contrário, continua culpando os adversários por sua própria derrota.
O PT construiu um cabedal na história política brasileira. Em menos de dez anos, um partido de esquerda, com um programa de esquerda e um candidato de origem operária, competiu com chances à Presidência da República. Em menos de cinco anos, a incapacidade de sua direção para entender seus próprios erros levou sua maior liderança nacional a amargar 40% de rejeição no eleitorado.
A direção petista precisa dizer a sua militância que, numa democracia, um partido de minoria não governa sozinho, baseado apenas na suposta vontade popular. Governa com o apoio e o consentimento dos demais, ou o faz à custa da normalidade democrática.
Portanto precisa reconhecer que induziu suas bases em erro ao fazê-las crer que a via do assalto ao poder pela conquista da Presidência era a única e a mais rápida. Não era. Portanto ter renunciado a suas próprias convicções, como fez a direção petista, aliando-se à direita para impedir a adoção do parlamentarismo, apenas porque sonhava com a vitória fácil de Lula, é de um oportunismo que cedo será cobrado pelas bases, tão logo percebam o engodo.
O mesmo se aplica à tática eleitoreira face ao Plano Real. A militância saberá, um dia, o que parte do eleitorado do PT em 1989, que hoje apóia FHC, já sabe: todas as candidaturas conhecem o alcance e as limitações do Plano Real em sua atual fase. O resto é jogo eleitoral, a favor ou contra.
A direção petista precisa parar de despolitizar suas bases, sobretudo as religiosas e de movimentos urbanos, dizendo que a disputa eleitoral é entre a verdade e a mentira, os corruptos e os éticos. Precisa parar com essa retórica reacionária de que política é uma coisa suja, e que um pouco de princípios éticos basta para sanar todos os males do Brasil.
O PT tem o dever de esclarecer suas bases sobre a verdadeira natureza da política, que muitas de suas lideranças praticaram no passado e continuam praticando com realismo e crueza, e com grande dose de manipulação.
O PT precisa parar de dar guarida ao corporatismo anti-social e antidemocrático de parte significativa de suas bases e dizer, em alto e bom som, que isso nada tem de socialista, é uma das principais fontes de instabilidade econômica, e prejudica sobretudo aos menos organizados, isto é, aos mais pobres. Se quiser ser porta-voz exclusivamente dos ``setores organizados da sociedade", e não dos ``trabalhadores", então que o diga, e pare de brincar de esquerda.
Em suma, a síndrome de Pirro, uma compulsão em que, quanto maior o erro, maior a convicção com que se repete, está criando um fosso entre a militância e a direção petista.
Uma militância orgulhosa de sua própria identidade, longamente iludida pela promessa de que a felicidade é apenas a soma de todos os desejos, que se sente cada vez mais manipulada e traída por um partido eleitoral, que joga cada vez mais no curto prazo.
Se o divórcio ocorrer, ainda que isso não signifique necessariamente o fim do PT, grande parte de sua competitividade eleitoral ficará comprometida no plano nacional. E, com isso, comprometido estará também o mais poderoso fator que hoje empurra o centro e a direita na trilha da construção de uma economia estável e de instituições governáveis.
O Brasil precisa do PT.

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