São Paulo, terça-feira, 4 de outubro de 1994
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O voto viciado

HÉLIO BICUDO

Quando é insofismável que a máquina administrativa do governo federal privilegiou a candidatura Fernando Henrique Cardoso, que os canais de TV e rádio foram no mesmo sentido, o que traduz uso indubitável do poder econômico, os juízes dos tribunais eleitorais, deixando de lado incômodos textos legais, admitem que esses são costumes políticos. Afinal, sempre foi assim...
Entretanto, é preciso convir que os tempos são outros. Não mais se pode tolerar, na administração do Estado e no processo eleitoral, qualquer modalidade de corrupção. Isto se tornou evidente nos episódios do ``impeachment" do ex-presidente Fernando Collor e da CPI do Orçamento.
Ora, um processo eleitoral maculado por violações como as que ocorreram, não tem um mínimo de seriedade. Acrescente-se ainda a desigualdade no trato dos candidatos pelos meios de comunicação e, por último, a ``derrama" de cédulas falsas considerada ``jogo sujo" pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
Na verdade, a Justiça Eleitoral fica na superfície do processo sem atingir o seu cerne, que é a garantia de legitimidade do pleito.
Mas o que chama a nossa atenção é que ao denunciar esses fatos –da maior gravidade– porque, embora não reconhecidos pela Justiça em tempo oportuno, desvinculam o candidato beneficiado por eles do próprio fundamento da representação, que é a verdade ao qualificar o voto livre.
Porque voto manipulado pelos abusos apontados não é livre: é viciado e, assim, desqualifica o processo, inverte-se a equação, para profligar a denúncia e desqualificá-la, sem desmenti-la com fundamentos adequados, invocando argumentos emocionais, como falta de patriotismo, ao se denegrir o nome do Brasil no exterior.
Falta ao patriotismo, e denigre o conceito externo do país, quem viola o processo ao usar a máquina e é beneficiado do poder econômico e dos meios de comunicação.
O que prevalece, no caso, a seriedade de uma denúncia ou as bananas? Na verdade, há muita banana para pouca seriedade.
E mais, o candidato beneficiário, uma vez eleito, não tem compromissos com o eleitor e pode enveredar por caminhos –como aconteceu no episódio Collor– que nada têm a ver com a representação que só o voto livre legitima.
E há mais ainda.
Como já se vem desvendando, mediante indiscrições da equipe econômica, pretende-se golpear fundo a Constituição, desconstitucionalizando questões de relevância como a ordem econômica, a previdência social e o sistema tributário, para que sua disciplina passe à alçada das leis complementares, fáceis de bloquear em decorrência do quórum baixo exigido para sua aprovação (artigo 69, da Constituição Federal).
O que se pretende, realmente, é restaurar-se –diante de um Congresso enfraquecido– o autoritarismo do Estado, governando-se mediante medidas provisórias (leiam-se os decretos-leis de vigência imediata) enfiadas goela abaixo do Parlamento, como aconteceu com a medida provisória 542, de 30/06/94, que instituiu o real.
Aliás, essa medida é flagrantemente inconstitucional pelo simples fato de ser irreversível. O bom senso e o patriotismo de um governo, deveriam, no caso, escusar-se de violar a Constituição e propor a mudança mediante um projeto de lei. Mas... havia pressa, muita pressa.
Aí está. Como não contestar a legitimidade de mais um processo eleitoral, diante de um quadro de violações legais e de comprometimento da liberdade do voto, sem qualquer compromisso com o Estado Democrático de Direito?
Só mesmo a paixão política, desconhecendo que um Estado democrático não se constrói sobre bases falsas ou falsificadas, é que pode inverter a equação, transformando o branco em preto e o quadrado em redondo.

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