São Paulo, quarta-feira, 5 de outubro de 1994
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"Função poética" esconde outros jogos

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Função poética" esconde outros jogos
Qualquer analfabeto da PUC percebe uma aliteração
Depois do concretismo, confunde-se poesia com culinária verbal
Para Arnaldo Antunes a poesia é um exercício de renovação das possibilidades técnicas da linguagem
A rnaldo Antunes criticou, na Ilustrada de segunda-feira, o artigo que escrevi a respeito da polêmica entre Augusto de Campos e Bruno Tolentino. Felizmente, o tom de sua intervenção foi bastante equilibrado, e alegro-me de poder discutir com ele.
O artigo enuncia basicamente duas discordâncias: com a minha concepção de poesia, e com o fato de eu minimizar ``a evidente diversidade de caminhos estéticos na produção poética de hoje", pondo tudo na conta dos ``concretistas". De fato, referia-me aos ``irmãos Campos" e a seus ``admiradores", ignorando as particularidades de cada um. Arnaldo Antunes lembra que ``concretismo" é um termo que se aplica a um movimento dos anos 50, e que é inexato continuar a empregá-lo hoje em dia.
Tudo bem. A questão é escolástica. Ou melhor, não é. Mais importante é debater as concepções de poesia em jogo.
Critiquei o ``formalismo" da poesia de Augusto e Haroldo. Diz Antunes que eu tratei isoladamente de forma e conteúdo; que ``a poesia é justamente o espaço de linguagem onde a forma significa: onde significante e significado se amalgamam um ao outro, indissociáveis".
Falei mal da mania de trocadilhos que há entre tantos (e tão diversos, OK) poetas brasileiros contemporâneos. Arnaldo Antunes diz que eu me referi ``de forma pejorativa às aliterações, paronomásias, anagramas e outros jogos sonoros de que a função poética se utiliza para gerar `aquela permanente tensão entre o som e o sentido' a que Valéry se refere."
Bom. É hora de começar o debate. Sei muito bem o que Valéry disse, concordo plenamente com a idéia de que na poesia ``significante e significado se amalgamam um ao outro, indissociáveis".
O problema é saber como se dá a tensão entre ``o som e o sentido", e como se dá o ``amálgama indissociável" entre significante e significado. Acho que há inúmeras maneiras de se fazer isso. Claro, pois há inúmeras maneiras de se fazer poesia. Arnaldo Antunes e eu estamos plenamente de acordo quanto a isso.
Minha opinião, entretanto, é que a partir do concretismo passou-se a encarar essa ligação entre som e sentido, ou essa tensão entre significante e significado, de forma ingênua, puramente técnica; falei mesmo, no artigo anterior, de uma ``relação infantil" com a linguagem.
Aliterações, paranomásias, anagramas: é como se todo mundo lesse poesia, atualmente, apenas à procura disso –desses jogos de palavras, se não quisermos usar um termo pejorativo como ``trocadilho". Trata-se, para mim, da forma mais fácil, mais mecânica, de identificar a ``função poética". Qualquer analfabeto da PUC percebe uma aliteração.
Há aliterações belíssimas. Castro Alves, por exemplo, evoca nossa bandeira, ``que a brisa do Brasil beija e balança". Verso inesquecível, fundado na aliteração em B, e no quase anagrama brisa/Brasil, onde o ``L" sobra, se desprega, e pousa depois no ``baLança". E esse ``balança", trissilábico, como que horizontaliza o ritmo do verso, distende-o, embala-o, areja tudo com três ``A", dando sonoramente a idéia de bandeira ao vento. Posso continuar. Na palavra ``bandeira" já estão o ``ei" de ``beija" e o ``an" de ``balança"; Castro Alves não fala em ``bandeira" mas em ``auriverde pendão da esperança", e existe simetria entre os ``E" de ``verde" e ``esperança" com os ``A" do verso que se segue, culminando em ``balança".
Essa estatística de vogais e consoantes, volto a dizer, é tediosa, ou no mínimo óbvia. A não ser que seja analfabeto, o leitor percebe o encanto do verso de Castro Alves e não precisa de explicações como as que dei acima.
Tudo isso é literalmente o bê-á-bá, não o bê-á-bá de Castro Alves, mas o bê-á-bá da poesia. Esplêndido bê-á-bá, aliás.
Falei, no artigo que Arnaldo Antunes critica, de outra coisa, que para mim também faz parte da ``função poética". Referia-me, reconheço que obscuramente, ``a tudo o que de secreto e sensível possa haver no entendimento poético do mundo".
Dou alguns exemplos disso. Minha intenção é mostrar que ``função poética" –termo tão burocrático, aliás– não é apenas agenciamento de sonoridades.
Lendo o que Carlos Drummond escreve em sua ``Tarde de Maio", em ``Claro Enigma", encontro uma poesia, ou melhor, um ``entendimento poético do mundo", que não se reduz ao jogo das paronomásias e aliterações:
``Como esses primitivos que carregaram por toda parte o maxilar inferior de seus mortos, / assim te levo comigo, tarde de maio..."
Não sei se um poeta tão bom como Arnaldo Antunes concorda comigo, mas acho que nesta metáfora estranha e misteriosa, há tanta poesia quanto no verso de Castro Alves.
Obviamente o poema de Drummond não se presta à análise fonética e tipográfica que fiz do trecho do ``Navio Negreiro".
Quando Victor Hugo escreve, em seu ``Booz Endormi" (Booz Adormecido) o verso ``Les souffles de la nuit flottaient sur Galgala", os ``F" e ``L" e os ``A" abertos do final dão plenamente a idéia dos sopros da noite vagando no deserto.
Mas quando, no mesmo poema, a virgem israelita se inclina sobre o corpo adormecido do velho Booz –os dois vão fazer sexo– e, desentendida, feminina e mística, olha o céu estrelado e pergunta, diante da lua,
``Quel Dieu, quel moissoneur de l'éternel Été,
avait, en s'en allant, negligeamment jeté
Cette faucille d'or dans le champ des étoiles",
(que deus, que ceifador do verão eterno, tinha, ao afastar-se, jogado com negligência essa foice de ouro no campo das estrelas), fico pensando se, acima das prováveis coincidências fonéticas que se encontram nesses versos, não há algo de poético, de metafórico (lua-foice), de ``desentendido", acima da pura técnica, acima das aliterações, jogos de palavras etc., pairando no poema.
Chego ao fundamental. É claro que, num verso aliterativo, virtuosístico, há atenção à ``função poética". Há jogo entre o som e o sentido. Mas esse ``jogo" se joga dos dois lados. Tanto do lado do som, quanto do lado do sentido. Sonoridade bonita, harmonioso, há evidentemente no terceto final de ``Booz Endormi". Mas o ``sentido" dos versos, a metáfora, a ``desrealização" daquela noite no deserto, a psicologia de uma mulher simples, que compara a lua à foice com que ceifava durante o dia os campos de trigo, o mistério da concepção carnal, tudo isso também está na poesia de Victor Hugo.
Idéia de poesia: para mim, nunca se tratou apenas de uma expansão, ou de uma renovação, das possibilidades técnicas da linguagem. Trata-se, também, de uma comunicação dos momentos de alargamento, de uma questão de técnica, mas de visão. Ou seja, importa ver o mundo com nossos próprios olhos –só a partir daí, com a culinária das aliterações, das rimas, do vocabulário, é que algo vale a pena ser dito.
A impressão que tenho é que, depois do concretismo, confunde-se poesia com culinária verbal. E linguagem com significante. Não sou eu quem separa burramente o significante do significado. O problema é que todos se contentam com um significado banal, banalíssimo (Amor/Humor, no poema de Oswald de Andrade; Lixo/Luxo, no poema de Augusto de Campos) desde que fundado numa cabriola do significante, num trocadilho paupérrimo.
Infelizmente, meu espaço está acabando. Nunca pensei que criticar ``os irmãos Campos" ou seus ``admiradores" despertasse tanto interesse, já que a meu ver a coisa está esgotada há muito tempo. Mas, dada a polêmica, continuo nos próximos artigos.

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