São Paulo, quarta-feira, 5 de outubro de 1994
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Nossas elites no capitalismo selvagem

LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES

A partir dos anos 80, os termos ``elites" e ``capitalismo selvagem" começaram a frequentar assiduamente o discurso indignado. Não se fala mais em burguesia, imperialismo e latifúndio como nos tempos em que a maior parte da intelectualidade acreditava que o mundo marchava para o socialismo. A moda agora é acusar as ``nossas elites" por tudo de mal que acontece no país.
Nunca fica muito claro que grupos compõem as ``nossas elites". Supõem-se que sejam principalmente os empresários e os ricos, talvez os militares. Obviamente, das ``nossas elites" estão excluídos os membros de alguma elite que denunciam as outras elites e que, pela mágica da retórica, ficam livres de culpa e de responsabilidade.
Nas ciências sociais, o conceito de elite refere-se às minorias que, nas variadas instituições e meios sociais, destacam-se positivamente da ``massa" e que, por algum atributo, são consideradas superiores aos demais. O termo, como se sabe, foi introduzido na análise política, no dobrar do século, por Mosca e Pareto, para separar os que governam e mandam dos que são governados e obedecem.
Os marxistas desconfiavam da ``teoria das elites" na qual a ``dominação" parecia desligada da ``exploração". Politicamente correto era falar em classe social determinada pelo modo de produção. Além disso, a teoria das elites pressupunha um grupo no poder com interesses diferentes dos das massas.
Os cientistas sociais que usavam o conceito de elite eram considerados reacionários, incapazes de entender que sob o socialismo todos seriam iguais –não haveria grupo dirigente distinto do povão e com projeto próprio de poder. No máximo, ter-se-ia uma vanguarda que representaria e defenderia interesses coletivos. As massas seriam os verdadeiros sujeitos da história.
Após o desmoronamento do socialismo, a esquerda brasileira resolveu apropriar-se do conceito de elite para utilizá-lo na luta política. Se temos meninos de rua, pobreza, violência e prostituição de menores e outras pragas, a culpa é das ``nossas elites".
Contudo, embora útil para a guerra ideológica, o discurso indignado contra as ``nossas elites" não resiste a qualquer análise séria.
Em primeiro lugar, pode-se distinguir, sem conotação pejorativa, uma elite intelectual, uma elite religiosa, uma elite militar, uma elite esportiva, uma elite sindical etc. Em segundo lugar, é muito improvável que algumas delas sejam portadoras de todos os vícios e outras portadoras de todas as virtudes. Em terceiro lugar, se as ``nossas elites" são responsáveis por tudo, por que não lhes conceder também os méritos pelos aspectos considerados positivos da vida do país? Por que não lhes atribuir o crescimento industrial do pós-guerra, o atual acúmulo de divisas e até mesmo a conquista do tetra etc.?
A crítica às ``nossas elites" juntou-se à denúncia do ``capitalismo selvagem" que existiria atualmente no país. Esse também não era um termo habitual no vocabulário marxista. Marx e os socialistas não eram especificamente contra o capitalismo ``selvagem", mas contra o capitalismo ``tout court".
Nossa hipótese é que, entre nós, o conceito se consolidou devido à dificuldade atual de uma defesa explícita do socialismo e de um ataque frontal ao modo de produção capitalista. Tomada a questão ao pé da letra, deveríamos concluir que a luta não seria mais pelo socialismo, passando pela ditadura do proletariado, mas pelo ``capitalismo civilizado", a etapa superior de desenvolvimento da sociedade e, quem sabe, o fim da história, se aceitarmos o fracasso do socialismo e do comunismo que deveriam, segundo a teleologia marxista, suceder historicamente o capitalismo.
Mas, ainda que nos palanques a denúncia do ``capitalismo selvagem" possa esquentar a temperatura, o termo não parece particularmente adequado para caracterizar o capitalismo brasileiro no que ele tem de mais tipicamente capitalista. É certo que sempre se pode designar o garimpo e a extração da madeira nas selvas da Amazônia como capitalista... e selvagem. Mas o termo costuma ser usado para designar a totalidade do sistema econômico brasileiro.
Nosso capitalismo está longe de ser selvagem se a analogia é com o que existiu nos EUA. O capitalismo norte-americano da época dos chamados ``robber barons", esse sim, foi selvagem, no sentido de que não estava tolhido por normas e por regras de proteção social originárias do poder político. Não é, nem de longe, o caso do capitalismo brasileiro, que se formou sob a proteção e regulamentação do Estado.
Se tomarmos a década de 30 como o marco do avanço industrial e da expansão do capitalismo nacional, vemos um sistema produtivo impulsionado e dirigido por uma elite política e por uma tecnocracia. No tocante à força de trabalho, no setor do moderno capitalismo, houve desde cedo uma forte proteção e tutela efetuadas sob a forma de um corporativismo estatal. Mais recentemente, a atual Constituição foi além da CLT e estendeu aos assalariados um conjunto de direitos inexistentes em muitos países de renda ``per capita" bem mais elevada do que a nossa.
Seguramente, há muita brutalidade e injustiça na sociedade brasileira. Mas a questão é de saber se o que temos de ``selvagem" é produto do sistema econômico capitalista ou se advém de outras características da sociedade brasileira, a começar do passado escravista.
Tudo indica que os aspectos de nossa vida social que consideramos ``selvagens" estão associados mais com insuficiência do que com excesso de capitalismo. Justamente onde o moderno capitalismo se implantou, os salários são mais elevados, a organização sindical é mais forte, há mais cidadania, mais democracia etc. A existência de focos de trabalho semi-servil ou servil (o termo ``trabalho escravo" é mais chocante) é justamente a negação do capitalismo.
Do ponto de vista etimológico, a palavra ``selvagem" associa-se à ausência de leis e de regras. Qualquer exame relativamente objetivo do sistema produtivo brasileiro mostraria exatamente o contrário.
Por isso, se pretendemos um mínimo de compromisso com a objetividade, seria mais adequado denominar o que existe entre nós de capitalismo burocrático. Mas é claro que o termo leva à idéia de desregulamentação, de redução do intervencionismo e, no limite, de neoliberalismo...

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