São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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Dicionário esconde desejo de dominar o mundo

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando desembarquei de um navio cargueiro no porto de Liverpool, Inglaterra, em dezembro de 1941, os japoneses acabavam de atacar Pearl Harbor, os americanos, por isso, acabavam de declarar guerra às potências do Eixo, e a Inglaterra, devido a tudo isso, estava em festa. Continuava a tratar das feridas causadas pelo bombardeio alemão que a torturava desde 1940, mantinha à noite seu feroz black-out e apertava o cinto da população inteira com um racionamento de comida draconiano, mas intimamente estava em festa. Não ia mais, como até então, lutar sozinha. Tal como acontecera na Primeira Guerra Mundial, os americanos iam entrar em cena. Nenhum inglês diria isto em voz alta, mas ``viva Pearl Harbor!"
Foi por esse tempo que Churchill, num daqueles discursos que a BBC traduzia e transmitia para o mundo inteiro nas 159 línguas que falava, citou Bismarck, o chanceler da unificação alemã, que afirmara que o grande dado político do mundo do fim do século 19 era que a Inglaterra e os Estados Unidos falavam a mesma língua. (Conto aqui, ao pé do ouvido do leitor, que foi grande o esforço posterior para localizar nos discursos e pronunciamentos de Otto von Bismarck a prenhe frase em que ele via o mundo nas garras da língua inglesa. A frase não foi, que eu saiba, descoberta até hoje. Era certamente do próprio Churchill.)
A moral da história é que a língua que se transformar na língua aceita de todos os homens, será a dos dominadores da Terra. Tudo parece indicar, no momento, que o inglês, que tanto teria preocupado Bismarck, já ganhou a parada. Mas não esqueçamos, por exemplo, que na China há 1 bilhão e 100 milhões de seres humanos falando chinês e que a China vive um enérgico renascimento.
Além do mais, o Deus severo do Antigo Testamento não gostava nada dessa idéia de uma língua única. O gênesis, capítulo 11, conta que o homem tinha ficado tão arrogante, tão metido a Deus, que se pusera a construir uma torre para tocar no próprio céu. Deus, sutil, não resolveu, digamos, derrubar com um raio o que já tinha sido construído da torre de Babel. Encerrou, isto sim, o período totalitário da língua humana, que até então era uma só, e com esse truque de gênio criou uma confusão babélica.
Ninguém, entre os obreiros da torre, sabia mais o que fosse tijolo ou pedra, martelo ou pá. Estavam diversificados os idiomas. Nasceu de chofre nos homens a convicção de que estariam perdidos se não soubessem memorizar e entesourar as palavras da tribo, as únicas verdadeiras, as únicas que refletem com perfeição a realidade. Os dicionários entraram em cena.
Como se vê, da voz de Churchill como da de Jeová, salta a verdade de que, se chegarem de novo ao idioma único, pré-babélico, os homens terminarão sua torre e invadirão o céu. Enquanto não chegam lá, mas sempre na esperança de lá chegarem, pedem auxílio aos Oxford English Dictionary, aos Robert, aos Aurélio.
Em todo bom dicionário esconde-se o secreto desejo de conquistar o mundo. Se conseguirmos amealhar na ordem alfabética, submetidos a uma poderosa lente histórica e etimológica, os ordeiros sons em que soubemos catalogar o caótico mundo em torno, teremos uma boa chance de afinal dar razão a Camões quando disse, da tribo de homens que falava o idioma português, que ``se mais mundo houvera lá chegara".

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