São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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CUMMINGS CENTENÁRIO

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Passaram-se mais de 60 anos desde que o (então respeitável) crítico R.P. Blackmur sentenciou que a arte do poeta E.E. Cummings, considerada a sério, não era mais que uma espécie de ``baby-talk". Hoje ninguém mais sabe quem é Mr. Blackmur. Mas Cummings está entre os grandes da poesia moderna norte-americana. Para os poetas –os mais exigentes, pelo menos– isso nunca foi novidade. Marianne Moore: ``E.E. Cummings é um concentrado de significações titânicas, `um caráter positivo'; e somente a inventividade poderia tentar sugerir em uma palavra o aspecto `heróico' de suas pinturas, seus poemas e suas resistências. Ele não comete erros estéticos". William Carlos Williams: ``Penso em Cummings como Robinson Crusoe no momento em que viu a impressão do pé desnudo de um homem na areia. Isso também implicava uma nova linguagem –e um remanejamento da consciência". Ezra Pound: ``Cummings? Sim. Sempre o mais vivo de nós todos".
A área principal de atrito de Cummings com a crítica se localiza no seu uso não-ortodoxo da tipografia, as suas famosas ou famigeradas fragmentações de palavras. Mas tais desconstruções gráficas são só aparentemente desorganizadas e, no fundo, construtivistas ou reconstrutivistas, pois têm finalidades ao mesmo tempo semânticas (buscando, por meio de associações icônicas, reconstituir a experiência sensorial ou imaginativa e multiplicar os níveis de leitura) e estruturais (relativas à divisão estrófica do poema).
Nesse sentido, não constituem um fato isolado na poética de Cummings; unem-se a outros tantos recursos formais, dentre os quais sobressaem: a cunhagem de vocábulos, em grande parte por processos de afixação; as trocas de classes gramaticais, consistentes sobretudo na conversão de verbos, pronomes, adjetivos, advérbios e conjunções em substantivos; e o deslocamento sintático, ou aquilo que D.J. Grossman (o mais conhecido tradutor francês de Cummings) denomina de ``interversão", isto é, a alteração da ordem das palavras, tal como a concebe a estrutura das proposições da lógica discursiva.
O que é fundamental para compreender a poesia de Cummings é que as suas transgressões tipográficas e sintáticas não são meros fogos de palha ou gratuidades. O que ele pretende é rejuvenescer a linguagem e explorar, com maior flexibilidade do que permitem as estruturas entorpecidas dos sistemas convencionais, o universo complexo da percepção e da sensibilidade. É por isso que ele introjeta num idioma moderno ocidental, como o inglês, procedimentos derivados do ideograma chinês (a figuralidade de origem pictográfica e o pensamento por analogia) e de línguas clássicas como o grego ou o latim, tratando o seu idioma como se fosse uma língua flexionada –como já observou Norman Friedman, no seu estudo ``E.E. Cummings: The Art of His Poetry"– de forma a liberar a ordem das palavras.
Igual libertação é concedida às áreas mais humildes da linguagem, como os conectivos ou as partículas de transição. Lionel Trilling, um dos raros críticos que souberam apreciar o poeta desde a primeira hora, escreveu a propósito: ``Ele foi capaz de encontrar mais e mais vida em mais e mais palavras. Aquelas partes da linguagem que todos considerávamos apenas `modificadoras', `relativas' ou `dependentes' aprenderam com ele a ter uma existência plena e livre". É esse o caso de prefixos como ``un-" ou ``non", ou sufixos como ``-less", ``-ness" ou ``-ly", que se unem a outros vocábulos para criar novas palavras, por exemplo: ``nonsun" (nãosol) ou ``sunly" (solmente) ou ``dreamlessnesses" (semsonhidades). E de partículas como ``a", ``un", ``self", ``much", ``when", ``if", ``am", convertidas em substantivos.
Esse anárquico idioleto de Cummings não é, porém, nem caótico nem egocêntrico. Obedece antes a uma ética que privilegia a criatividade individual contra o conservadorismo da maioria (``mostpeople"), o amor e a solidariedade contra a cobiça e a guerra, a poesia e a emoção contra o negócio e a razão condicionada pela obediência cega aos valores convencionais. Daí a simpatia com que Cummings vê os amantes, as crianças, as minorias discriminadas ou excluídas, como os bêbados e as prostitutas, e o correlato desprezo com que trata os negociantes e os políticos, os fascistas e os comunistas (igualmente escarnecidos por ele) e os ``democratas" e ``patriotas" belicistas e preconceituosos.
Sua poesia apresenta algumas linhas temáticas, muitas vezes recorrentes. Há uma vertente descritiva (motivos principais: a lua, a estrela, a folha e o floco de neve, a primavera e as estações, o crepúsculo; pequenos animais como o gato ou o esquilo, e insetos como o gafanhoto, a abelha, a mosca); e uma vertente amorosa, altamente significativa, tanto na pauta físico-erótica da primeira fase como na mais espiritualizada dos poemas da maturidade. Entre essas duas linhas se situam os poemas que retratam personagens em breves anedotas poéticas, podendo tanto homenagear pessoas reais como Picasso, Ford Madox Ford, o comediante Jimmy Savo, ou o dançarino Paul Draper ou consagrar criaturas anônimas como prostitutas ou vagabundos, uma camponesa ou um catador de papéis.
Na antítese dos poemas amorosos ou encomiásticos, se situa uma larga porção da poesia de Cummings: os poemas satíricos, que abrangem os textos antibélicos como ``Plato told" e ``Why must itself up of every park", os que ridicularizam os valores convencionais e suas figuras prototípicas como ``the Cambridge ladies who live in furnished souls" (as damas de Cambridge que vivem em almas mobiliadas) ou ``the dollabringing virgins" (as virgens endolaradas), i.é, as turistas americanas em Veneza (``MEMORABILIA") e invectivam a ``manunkind", a ``humanimaldade" dos patrioteiros, dos negociantes e dos políticos (``a politician is an arse upon").
Finalmente há a categoria dos poemas de ``persuasão" ou de ``reflexão", como os classifica Norman Friedman, aqueles em que se projeta a filosofia de vida do poeta e o seu elenco de valores, como ``now air is air and thing is thing, no bliss". Evidentemente, essas categorias não são estanques, e se projetam umas sobre as outras. Como afirma Friedman, a poética de Cummings ``se origina do que ele chama de `metafísica carnalizada; ou abstrações elevadas à potência do concreto'. Sua visão da vida, embora transcendental, começa por um básico e inabalável deleite sensual pelo mundo físico, tanto urbano quanto rural. É o mundo social, o mundo das ansiedades e rotinas criadas pelo homem que ele transcende e não, como se acredita às vezes, os mundos físico e cultural. Não é a morte mas o medo da morte que ele ironiza e não a tradição cultural existente mas a convenção estéril."
As minhas primeiras traduções da poesia de Cummings, reunidas em livro em 1960 (``e.e. cummings - 10 poemas", edição do Ministério da Cultura), enfatizaram o poeta das experiências de gestualização tipográfica, o mais revolucionário e o menos aceito e entendido. Delineado o perfil do poeta-inventor e implodida a textura tradicional do poema com a exposição dessa inusitada ``tortografia", tornou-se possível explorar, em leituras posteriores, o espectro mais amplo das vertentes cummingsianas.
Duas novas seleções de poemas, publicadas em 1979 (``e.e.cummings - 20 poem(a)s", Editora Noa Noa) e 1986 (``e.e.cummings - 40 poem(a)s", Editora Brasiliense), ampliaram o número de textos traduzidos, enfatizando o humor cummigsiano e as sutilezas de sua fase derradeira. Neste centenário do nascimento do poeta, pretendo homenageá-lo com mais algumas traduções, abrangendo todas as suas faces e estilos. Das composições líricas de juventude como ``somewhere I have never travelled" (nalgum lugar em que eu nunca estive) aos poemas objetivistas, como os que tematizam a mosca, a estrela, o floco de neve. Dos epigramas crítico-anedóticos, como os que descrevem os bêbados de rua –``a he as o" (um o tão v)– aos poemas francamente satíricos, que escarnecem os ``unpeople", as não-pessoas, sem horizonte a não ser a vida prática e o lucro, como ``you no" (você re). Este poema se fulcra no trocadilho (irrecuperável literalmente em português) entre ``more" (mais) e ``morticians" (agentes funerários). Com liberdade, uso na tradução as palavras ``mais" e ``animais", mudando a chave semântica, mas mantendo o tom cáustico do poema dentro de um equivalente jogo de palavras. ``One" (o poema do floco de neve) é objeto de montagem especial: um dos derradeiros textos de Cummings –divulgado na coletânea póstuma ``73 POEMS" (1963)– serve de epígrafe e epítome da arte rigorosa do poeta, na concisão, na precisão e na perfeita simetria de suas linhas:

one
t
hi
s
snowflake
(a
li
ght
in
g)
is upon a gra
v
es
t
one

Cummings é um mestre da tmese (do grego ``tmesis", corte), ou intercalação de palavras, processo que tem origem no latim clássico –o exemplo mais notável é ``cere-comminuit-brum" (que traduzo por cere-esfacela-bro), geralmente atribuído a Ênio (século 3º a.C) –mas que Cummings, versado em literatura greco-latina, emprega sistematicamente e erige à condição de recurso privilegiado da estrutura, associando-o às técnicas da montagem cinematográfica e da colagem.
Algumas vezes a tmese se alia à tática dos deslocamentos sintáticos, produzindo efeitos de confusão de sensações ou simultaneidade perceptiva. Vivamente presente nas primeiras linhas do poema da mosca –``(of pane)the" / na vidraça)a– se desenvolve admiravelmente num pequeno poema inédito recolhido na coleção póstuma ``ETC" –``thing no is(of" / coisa é nenhuma(de –de estilo semelhante a outro, anterior, já traduzido por mim: ``nonsun blob a" (não sol bolha um). Se reconstruirmos a ordem de encadeamento lógico do poema, ele oferecerá, entre outras possibilidades de leitura, a seguinte: ``of all things which are, no thing is so quite alive as one star (which will disappear in a now) to whom kneeling I say here my (who)" (de todas as coisas que são, coisa nenhuma é tão bela como uma só estrela (que já vai indo embora num aqui) à qual ajoelhado eu digo agora meu (quem).
Numa das leituras possíveis a palavra ``will" (formante do futuro) sugere também o substantivo com o significado de ``desejo", que poderia também completar a frase em suspenso, tomando o lugar de ``who" (quem). Mas é da própria incompletude do enunciado, da dispersão e da ambiguidade frásica que se forja o momento mágico do poema; de um lado, a desordenação imposta ao texto iconiza a contemplação da estrela perdida na paisagem celeste, e de outro, por meio da substantivação das partes do discurso, opera a transformação da coisa em ser ou do ``which" em ``who", ou ``que" em ``quem", para usar o jargão estilístico do próprio poeta.
Acho admirável que Cummings, em seus últimos poemas, tenha insistido em pesquisar nessa área-limite da desautomatização da linguagem, tão difícil de empreender, mas tão rica de sugestões. Está aí talvez um dos pontos de contato de sua obra com a poética de John Cage. Este, como se sabe, foi um dos primeiros a musicar poemas de Cummings nas composições ``Five Songs for Contralto", 1938, ``Forever and Sunsmell", 1942, ``Experiences 1", 1945, ``Experiences 2", 1948. Alguns dos próprios textos de Cage parecem dever algo a outros de Cummings. É o caso do título de ``Diary: How to improve the world (You will only make matters worse)", 1965, que recorda o ``sonnet entitled how to run the world" de ``No Thanks". E do apólogo de Suzuki relatado por Cage na sua Conferência da Juillard (``Before studying Zen, men are men and mountains are mountains") que faz lembrar ``now air is air and thing is thing: no bliss" (agora ar é e coisa é coisa: traço") de ``95 Poems", também incorporado a esta coletânea de traduções. Mas são procedimentos como o deslocamento sintático e tipográfico e a liberação das partículas auxiliares ou subordinadas que irão interessar mais especificamente a Cage, ainda que chegue a eles não por meio de um deliberado controle da desconstrução, como Cummings, mas antes pelo desencadeamento de processos casuais que têm por escopo eliminar a interferência do gosto pessoal.
Indagado sobre suas preferências em poesia, Cage manifestou em mais de uma oportunidade a sua admiração por Cummings, Eliot, Pound, Gertrude Stein e James Joyce. E embora tenha sempre afirmado que Joyce e Gertrude foram os mais importantes para ele, o fato é que em seus ``mesósticos" –alguns dos quais compostos inteiramente de fragmentos do ``Finnegans Wake"– ele fez convergirem Joyce e Cummings, assim como o fizera antes com Pound e Stein. De qualquer modo, há uma forte presença cummingsiana na obra de Cage, que compartilha com o poeta uma generosa ética anarco-individual da cidadania americana, com raízes comuns na ``desobediência civil" de Thoreau. É mais um aspecto das potencialidades prospectivas da obra de Cummings, que resiste com intacta grandeza neste fimcomeço de século.

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