São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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Que fim levou a política?

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O recente processo eleitoral foi marcado por uma apatia desencorajadora. Pode-se compreender o fato como efeito da descrença nos candidatos, partidos e instituições parlamentares. Pode-se igualmente achar que as pesquisas sobre intenções de voto, dando grande margem de vantagem a um dos candidatos, desestimulou o debate. Muitas outras interpretações podem ser sugeridas.
Penso, no entanto, que as eleições refletem uma mudança mais fundamental na vida social brasileira. O desinteresse por eleições e por política é típico dos países ricos. No Ocidente rico, salvo em caso de ``ameaça esquerdista", os cidadãos costumam dar de ombros, toda vez que são convocados a votar. Acham que qualquer coisa ou qualquer um pode ocupar o poder, contanto que prometa menos impostos, menos trabalho, mais consumo e mais lazer.
No Brasil, a tendência parece ser a mesma, com variantes locais, é claro! O país, sabemos, dividiu-se em dois. À parte minoritária, integrada ao circuito do consumo de bens e serviços, pouco importa eleger A, B, C ou D. Um ou outro, tanto faz. Desde que os supermercados continuem oferecendo as marcas de produtos preferidas, os shopping centers continuem lustrosos e seguros, e por fim, as viagens anuais à Europa e aos EUA continuem garantidas, tudo vai bem no melhor dos mundos. Afinal, sem MacDonald, tênis Nike, carro Mitsubishi, pasta Crest e idas a Miami, New York e Paris que sentido pode ter a vida?
A parte majoritária, por seu turno, aprendeu que, com ou sem eleições, suas vidas duras, carentes e miseráveis vão seguir o rumo de sempre. Com A, B, C ou D, a tarefa é a mesma: sobreviver ao próximo salário mínimo; ao próximo assalto; à próxima crise inflacionária; à próxima fila do Inamps e à próxima bala da polícia ou do bandido.
Em minha opinião, isto só prova o que se diz há muito tempo. Nas democracias parlamentares ocidentais, a economia devorou a vida social e dá o golpe de misericórdia na vida política. Não se trata de frear a história, nem fazer de contas que os problemas reais não existem. Todos sabemos que a fome, o desemprego, a inflação e a estagnação econômica atingem sobretudo os mais frágeis.
Já se disse e repetiu que sem progresso, adeus democracia! Mas esta verdade tem um só olho. Sem dinheiro e sem um mínimo de bem-estar ninguém pode saber ou querer saber o que é democracia. Mas sem idéia de justiça, decência, solidariedade, liberdade, respeito às crenças privadas dos outros etc, com dinheiro ou sem dinheiro, nenhuma democracia vai existir.
No Brasil, sobretudo, a maioria dos políticos acredita ou finge acreditar que basta crescer economicamente para que o sentido de moralidade coletiva e de cooperação social se instalem. Isto é falso por vários motivos. Primeiro, porque sabemos que a produção de riquezas pode concentrar-se nas mãos de uns poucos, e nisto todos temos PhD e pós-doutoramento. Esta copa é nossa; somos campeões do mundo.
Segundo, porque, num país como o nosso, o modelo de desenvolvimento econômico baseado no consumo de supérfluos é retro-alimentador de diferenças sociais cada vez maiores. É preciso acumular muito para ostentar o padrão europeu, japonês ou americano de vida. E quem entrou neste universo, não vai mais querer sair, exceto à força.
Terceiro, porque a realidade urbana atual nega a mentira do bem-estar na civilização do consumo. Os signos de ostentação diferenciam continuamente os mais ricos, criando nos outros grupos o constante sentimento de ``pauperização" psíquica, responsável pelo ressentimento social capaz de explodir no consumo de drogas, na violência contra minorias ou em ataques cegos e gratuitos ao patrimônio material e moral de todos.
É verdade, a derrocada dos regimes comunistas do Leste europeu mostrou o absurdo daquele tipo de organização política, econômica e social. Mas também é verdade que a crise econômica, política, social e moral das democracias parlamentares ocidentais, está longe de caucionar o jargão de que com economia tudo se resolve. É impressionante; foi impressionante!
O Brasil era um problema de bolso de patrões e bolso de empregados. Quase todos esqueciam de que economia gera puramente ``interesses". A política, ao contrário, é o que permite arbitrar entre interesses, fazendo valer princípios e valores. Produção, mercado, consumo, dinheiro não secretam ética. Entre interesses em competição, não há como saber qual o melhor deles, a menos que possamos dispor de um critério ``extra-interesse", ou de um interesse maior, que chamamos ``interesse de todos" ou ``bem comum".
Sem isso, por que os interesses de um corrupto, de um traficante ou de ``um espírito capitalista sem ética protestante" seriam melhores ou piores do que os interesses de cidadãos honestos? O que nos faz condenar alguém que assalta outro à mão armada, para roubar o que julga necessário à sua satisfação, e aprovar o gesto de quem produz e distribui riquezas, de modo socialmente justo? É na economia que está a resposta? Que os empresários e os tecnocratas neoliberais, com a ajuda massacrante da imprensa, tenham difundido a idéia obtusa de que o país é ``uma empresa mal administrada" é entendível. Eles estão defendendo seus ``interesses privados".
Mais difícil é entender a conversão dos políticos a estes pontos de vista. A atividade econômica não se auto-regula eticamente; tem de ser regulada pela ética política. Se subordinamos os valores aos interesses, temos como consequência o cinismo, a violência, o vandalismo e a destruição de qualquer ordem social democrática.
Sei que toda esta arenga é pregação no deserto. Vivemos num tempo onde, mais do que nunca, a história contada é a ``história dos vencedores". A opinião dominante ridiculariza e neutraliza toda ambição política emancipada da economia. Nos livros, debates públicos e meios de comunicação de massa, já não ensinamos que política é, como em sua origem, o exercício de imaginar mundos melhores e mais justos para todos. Foi assim na Grécia, na República romana, nos ideais dos revolucionários franceses e americanos e no pensamento socialista democrático, surgido no século 19. Nossos filhos não sabem quem é Thomas Payne, Thomas Jefferson, Voltaire, Danton, Saint-Just, Marx etc. nem mesmo que, um dia, neste país, política era sinônimo de grandes causas humanas e libertárias: Abolicionismo, República, Democracia, Socialismo etc.
Estas questões são vistas como caducas e fora de moda. Talvez sejam. Mas até que a última crença no bem comum morra é bom evocar, ao modo de Arendt e Benjamin: mais vale o que poderia ter sido ou pode vir a ser, quando o que nos é dado é pouco, pequeno, mesquinho e humanamente estúpido.

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