São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A guerra simbólica do cineasta de Fidel

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Santiago Alvarez é um produto da revolução cubana. Nem seria cineasta, não fosse a amizade com Alfredo Guevara, o primeiro presidente do Icaic, o instituto de cinema de Cuba.
Mas foi assim que aconteceu. Já com 40 anos, convocado a ajudar Guevara no Noticiário Icaic (cinejornal criado em 1959), Alvarez passou-se de armas e bagagens para esse veículo, que Fidel Castro considerava essencial à sobrevivência do regime socialista na ilha.
``O Olho da Revolução", longa entrevista concedida por Alvarez ao crítico de cinema Amir Labaki, articulista da Folha e diretor do Museu da Imagem e do Som de São Paulo, é a descrição minuciosa desse trajeto singular.
Médico formado, Alvarez foi morar nos EUA, nos anos 30, onde fez trabalhos subalternos durante algum tempo, antes de voltar para seu país, no início da Segunda Guerra.
Essa intimidade com a América de certo modo resume o tipo de sentimento que orienta os partidários da Revolução Cubana: a sensação de que seu país nada mais era do que o ``quintal" de Tio Sam. Uma revolução, portanto, fundada tanto no socialismo como no orgulho nacional.
Alvarez realizou cerca de 600 cinejornais (do total de aproximadamente 1.500 que coordenou para o Noticiário Icaic Latino-Americano) e 96 filmes (além de vídeos, uma opção desde que a crise econômica de Cuba restringiu, em 91, o uso de negativos).
Alvarez é, portanto, o que se pode chamar de cineasta de Estado. Mas não de burocrata. O cinema tem sido um fronte da guerra simbólica que, desde a tomada do poder por Fidel Castro, vigora entre Cuba e EUA.
Isso é mais visível justamente no setor de não-ficção. Para Alvarez, o grande problema nos primeiros anos era descobrir a fórmula de criar, em filme, as notícias que interessavam a essa guerra.
Alvarez saiu-se tão bem que a toda hora menciona-se a influência sobre ele do soviético Dziga Vertov, criador do cine-olho nos primeiros anos da Revolução Russa.
Alvarez se ofende um pouco com a menção. Diz que só viu filmes de Vertov por volta de 1970. Mas não há com que se ofender. Em ambos, prevalece a idéia de que a realidade bruta, apreendida pela câmera, é objeto de um processo posterior, o de montagem.
Tanto para os russos de 1920 como para os cubanos de 1960 era essencial colocar em relevo esse aspecto, já que a tradição americana se baseia no ocultamento da montagem. Ou seja, trata-se de vender como real um objeto simbólico.
Para os comunistas Vertov e Alvarez, trata-se de impor um objeto simbólico como tal (o filme) e fazer dele uma realidade. A idéia central é de que a realidade não é algo que se capta, e sim algo que se constrói.
No caso de Alvarez, a intimidade com os EUA levou-o a conhecer a mentalidade norte-americana, seus gostos, seus costumes. De certa forma, afiou-o para a luta em que se engajaria a partir dos anos 60. É desse combate, da maneira como ele chegou a criar as formas que geraram uma obra original, que ``O Olho da Revolução" tira seu interesse.
O livro chega num momento em que a idéia de cinema engajado está meio por baixo. Cuba também está com a imagem um tanto abalada (crise, êxodo por mar etc). Mas justamente por isso ``O Olho da Revolução" chega em um momento apropriado.
O cinema é uma arte mais inesperada que a política. Pode-se gostar de Rossellini sem ser católico, pode-se admirar Eisenstein sem ser comunista. Uma grande produção e uma pequena produção se equivalem. Um filme de autor pode ser mais ou menos interessante do que uma obra de produtor.
Essa ausência de regras, de uma tradição capaz de sufocar as outras, é uma das grandes vantagens do cinema. É isso que torna relevante o discurso de Alvarez: ele fala por Cuba, Estado socialista, mas também um Estado cinematográfico a não ser menosprezado (com uns poucos milhões de habitantes, sua produção só perde em importância desde os anos 60 para a do Brasil, na América Latina).
``O Olho da Revolução" é, ao mesmo tempo, um itinerário da Revolução Cubana, de seus vários momentos heróicos (a tomada do poder, o cerco continental ao país, a tentativa de invasão pelos EUA), mas também de suas fraquezas (a submissão à política soviética a partir do fim dos anos 60).
O mais interessante do livro, porém, fica por conta da constante necessidade de invenção de formas para expressar o que Cuba e os cubanos pretendiam dizer –a si mesmos e ao mundo– através do cinema.
Transitando das questões biográficas às formais, das políticas às referentes aos costumes, modo de sentir e viver de um povo, ``O Olho da Revolução" oferece uma visão de Cuba por seu principal documentarista. Visão comprometida, sem dúvida, mas será o caso de perguntar: qual não é?

Texto Anterior: Crítica incisiva às certezas neoliberais
Próximo Texto: Que fim levou a política?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.