São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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Língua bifurcada orienta cobras

JOSÉ REIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Biologista evolucionário da Universidade de Connecticut, Storrs, EUA, Schwenk publicou em ``Science" (263, 5153, 1577) artigo sobre observações suas e alheias a respeito da natureza e da função da língua bífida, ou bifurcada, de serpentes e alguns tipos de lagartos.
Mostra, entre outras coisas, que a bifurcação permite que a língua, oscilando no ar e entrando em contato com os objetos, consiga detectar pistas espaciais sobre o ambiente, em particular a presença de outros indivíduos da mesma espécie e de fêmeas receptíveis.
É antiga a preocupação da humanidade com esse fenômeno, constando da iconografia religiosa e significando em muitas culturas malevolência e fingimento.
Apesar disso, por um milênio talvez, não se manifestou interesse racional pela função do órgão. Construíram-se, sim, numerosas teorias meramente especulativas, porém não cogitações sérias, por exemplo, sobre sua significação evolucionária ou sobre seu funcionamento.
Aristóteles foi o primeiro em ocupar-se racionalmente do assunto, sugerindo que a duplicação da língua proporcione um duplo sabor, uma sensação gustativa duplicada. Cerca de 19 séculos mais tarde, Hodierna atribuiu à bifurcação papel mais prosaico, que seria o de desobstruir as fossas nasais naturalmente entupidas em indivíduos que vivem com o focinho enfiado na terra. Outra explicação é que a bifurcação serviria para capturar moscas.
Salienta Schewnk que Aristóteles estava próximo da verdade, não quanto à gustação mas quanto à natureza química e da olfação. Estudos rigorosos mostram que a língua, depois de oscilar no ar captando cheiros, retrai-se dentro de uma bainha que se acha em contato, por meio de fossetas, com pares de sensores (órgão de Jacobson) no focinho do animal.
A função da língua, oscilando no ar, é captar cheiros e levá-los aos quimiorreceptores. A oscilação assegura, quando a língua toca algum objeto impregnado de odor, a obtenção de sensação estérea e a precisa localização dos odores.
Parece que os lagartos usam essa capacidade para caçar.
Os de língua bífida são em geral errantes e caçadores, ao passo que os de língua simples atacam de tocaia e por isso têm menor necessidade do olfato.
Nas serpentes a bifurcação pode ter vários usos.
Um deles é favorecer, como nos lagartos, a captura de presas.
Outro é ajudar os filhotes a encontrar abrigo para a hibernação, seguindo o rasto odorífero deixado pelos adultos ao longo do caminho percorrido.
Os machos adultos utilizam a bifurcação para detectar o feromônio das fêmeas, isto é, as moléculas voláteis que vão impressionar o macho.
O rasto feromonal fornece ao macho variada informação, como o reconhecimento de ser da mesma espécie o animal que deixou marcada a pista e, se se tratar de fêmea, a informação sobre se ela se encontra receptiva ou não, e portanto sobre a utilidade de sua perseguição.
Não é fácil, em condições naturais, um macho topar com fêmea em estado adequado.
Embora na hibernação as serpentes se reúnam em covis, elas depois se dispersam e o encontro do macho com a fêmea adequada seria difícil se não fosse a ação da língua bífida.
Schwenk trata ainda de aspectos evolucionários.
Como nem todos os lagartos possuem língua bífida, e todas as serpentes a possuem, esse caráter deve ter evoluído pelo menos duas vezes independentes.
E como é muito grande a diversidade das serpentes no mundo, deve-se concluir que a língua bífida representa enorme benefício para o grupo.
Em outras palavras, o sucesso evolucionário das serpentes mais desenvolvidas poderia ser em parte devido à perfeição de seu mecanismo de bifurcação e do papel deste na reprodução.

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