São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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A multinacional crítica

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LISBOA

O único parlamento ao qual o presidente não comparece, alegando razões estritamente literárias, é o dos escritores. Foi o que ocorreu no Parlamento Internacional dos Escritores, realizado em Lisboa de 28 a 30 de setembro. Seu presidente não pôde comparecer: Salman Rushdie, escritor que vive na clandestinidade desde que foi condenado à morte pelo radicalismo islâmico.
Rushdie não esteve presente mas mandou sua mensagem, na qual afirmava que os membros do Parlamento, todos escritores, serão julgados pelas suas iniciativas, e que talvez seja salutar não serem julgados pelas palavras e sim pelos seus atos.
A mensagem de Rushdie serviu para situar o Parlamento no campo a que pertence, o da literatura, e justificar a formação de um ``contra-poder" ou uma ``multinacional crítica", conforme definição do Parlamento pelo sociólogo francês Pierre Bordieu. Trata-se de um contra-poder necessário num tempo em que a palavra em liberdade se tornou um perigo.
O encontro em Lisboa foi um sucesso porque entre as suas resoluções está a de fazer a ONU reconhecer que a palavra genocídio deve ser aplicada à Ruanda. Tal reconhecimento não apenas tornará obrigatório o julgamento dos responsáveis, como ainda tornará imprescritíveis os crimes cometidos. Foi um sucesso, porque os escritores agiram como escritores, intervieram eficazmente na realidade, se valendo da virulência das palavras. Salman Rusdie não tem do que se queixar.
Para saber o que pensavam os parlamentares reunidos em Lisboa, a Folha entrevistou alguns membros presentes: Eduardo Lourenço, autor de ``O Labirinto da Saudade" –prêmio europeu do ensaio em 1988–; o romancista José Saramago; Hélène Cixous, ensaísta e ficcionista francesa, autora de ``A Hora de Clarice Lispector"; o filósofo Jacques Derrida; Edouard Glissant, poeta martiniquês, vice-presidente do Parlamento; Assia Djebar, romancista argeliana, exilada na França; Adonis, poeta libanês, vice-presidente do Parlamento; Bei Dao, a grande voz da dissidência literária chinesa, exilado nos EUA.

Folha - Qual pode ser, na sua opinião, a maior contribuição do Parlamento Internacional dos Escritores?
Eduardo Lourenço - Não se deve esperar uma intervenção que tenha efeitos imediatos como a dos políticos. Os escritores aqui reunidos pretendem alertar a comunidade internacional sobre os ataques sofridos pela liberdade de pensar e de escrever em vários países do mundo. Os exemplos mais célebres e trágicos são os de Rushdie e Nasreen. O nosso protesto é de ordem moral, temos a obrigação de defender uma das grandes tradições da nossa civilização, que é a da liberdade de expressão.
José Saramago - A contribuição vai depender do eco que o Parlamento possa ter na opinião pública. Podemos dizer coisas importantes, tomar grandes decisões, mas se não tiver repercussão... Tudo depende da capacidade que o Parlamento tiver de transmitir as suas idéias à imprensa, ao rádio e à televisão. Não sei se os jornalistas estão conscientes da grande responsabilidade que têm.
Hélène Cixous - O simples fato de conseguir reunir escritores em torno do tema da defesa da liberdade é extraordinário e já é uma contribuição. Isso nunca havia sido feito. Os grandes escritores, que vivem em países não democráticos, são todos defensores da liberdade de pensamento e de expressão. O fato do governo nigeriano ter impedido Wole Soyinka, prêmio Nobel de literatura, de vir a este Parlamento, é um indício da importância do escritor na sociedade contemporânea.
Jacques Derrida - Já protestamos contra o que o governo nigeriano fez a Wole Soyinka. Vamos dar prosseguimento à política de cidades-refúgio para escritores perseguidos. Daqui por diante, pretendemos informar a imprensa sobre um grande número de perseguições a intelectuais, de modo a poder agir sobre os Estados. Queremos descentralizar o Parlamento e ter reuniões em vários lugares do mundo. Ademais, vamos refletir sobre o que está acontecendo com a democracia, com os direitos do homem... Sem a reflexão filosófica, a nossa ação poderá se tornar repetitiva.
Edouard Glissant - A maior contribuição do Parlamento é a natureza do mesmo: ser verdadeiramente internacional e não apenas uma emanação das idéias européias. O Parlamento deve corresponder à situação real do mundo, que é o objeto mais importante da literatura. O que se passa hoje, essa espécie de mistura extraordinária das culturas, muda as mentalidades. É preciso que tenhamos consciência de que cada comunidade deve preservar a sua identidade, não se deve perder numa espécie de magma universal, mas tampouco se fechar sobre si mesma.
Assia Djebar - No quadro do Parlamento já existe uma rede de cidades-refúgio, o que é uma contribuição. Nós aqui vamos escutar escritores que vêm de países onde há perseguições, e depois, a partir de informações confiáveis, discutiremos o que fazer. Temos que ir em direção a coisas concretas.
Adonis - O que faz a identidade de uma cultura é a criação. Se os criadores são oprimidos, a cultura e o povo são oprimidos. A contribuição do Parlamento é defender a liberdade de criação.
Bei Dao - A maior contribuição é a reunião de escritores do mundo inteiro, o encontro, independentemente do país de origem, da língua, da religião.
Folha - Que temas poderiam implicar em censura se fossem abordados no seu país?
Edouardo Lourenço - Não temos aqui em Portugal conflitos de ordem religiosa, ética ou biológica suficientemente dramáticos para que a censura se exerça. Mas no passado já houve até caso de escritor condenado à morte.
José Saramago - O único caso que eu conheço é o meu. ``O Evangelho Segundo jesus Cristo" havia sido selecionado para um prêmio europeu e o governo considerou que o meu livro ofendia o povo português nas suas crenças, na sua religião. Isso é completamente idiota, claro.
Hélène Cixous - Existe na França uma censura infinita no que diz respeito às mulheres. A misoginia está sempre presente. As mulheres são barradas nos jornais, mal recebidas. No que diz respeito ao lugar da mulher na nação, a França se encontra em 13º lugar e só há 5% de mulheres na universidade.
Jacques Derrida - Na França não existe uma censura explícita. A censura é mais sutil. O escritor corre o risco de não poder publicar, de não publicar na editora em que desejaria estar. Existem barreiras editoriais, grupos de pressão poderosos.
Edouard Glissant - A situação nas Antilhas francófonas é muito particular. Diria que não se trata de censura, porém de auto-censura. A assimilação dos modos de vida franceses é tão profunda, que o aparelho de Estado francês não precisa censurar.
Assia Djebar - Atualmente, a violência é tal na Argélia que qualquer intelectual, mesmo que não tenha se engajado no combate político, está ameaçado de uma ou de outra maneira. O que determina a censura não é o tema. Você é julgado pela língua na qual você se exprime. Os que nos ameaçam são os que querem uma unicidade da língua. Eu posso ser perseguida só porque escrevo em francês, um outro por escrever em berbere e, mesmo o que escreve em árabe, mas o faz no árabe do povo, também pode ser objeto da violência. Só está livre o que usa o árabe acadêmico, é um estado de pré-fascismo. Youssef Sebti, que escrevia em francês e no árabe popular, foi barbaramente assassinado.
Adonis - A censura não é causada pelo tema. Na verdade, podemos abordar qualquer tema. O que conta é o como, como o tema é abordado.
Bei Dao - Só é censurado o que possa comprometer o governo ou o partido. No mais tudo pode ser dito. São as questões de mercado que tornam a vida do escritor particularmente difícil na China, hoje.

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