São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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A "cirurgia" de J.K. GALBRAITH

EDIANA BALLERONI
ENVIADA ESPECIAL A SOUTH WARDSBORO (EUA)

John Kenneth Galbraith completa 86 anos no próximo sábado. Expoente do pensamento econômico deste século, ele conserva a lucidez e a fina ironia com que vem criticando há anos os monopólios, o FMI (Fundo Monetário Internacional), as políticas econômicas que sacrificam as garantias sociais e o Partido Republicano.
Galbraith recebeu a Folha em sua casa de campo em South Wardsboro –uma minúscula cidade encravada numa floresta ao sul de Vermont, estado dos EUA que faz fronteira com o Canadá.
O Canadá é o país onde Galbraith nasceu. Mas foi nos Estados Unidos que o economista traçou sua trajetória acadêmica e política. Professor emérito de Harvard, ex-editor da revista ``Fortune", Galbraith exerceu várias funções em governos presididos pelos democratas –como a de embaixador na Índia (1961 a 63) e a de conselheiro econômico do ex-presidente John F. Kennedy.
Galbraith conversou com a Folha à beira da lareira de sua casa. Acomodou seus quase dois metros de altura em uma cadeira de balanço, ajustou o volume de seu aparelho de surdez e falou sobre a economia mundial e sobre o Brasil. Ao final do encontro, fez questão de mostrar seu escritório –um ``cottage" que fica a uns 30 metros da casa principal. ``Desde que me aposentei, estabeleci para mim mesmo que escreveria todos os dias. Eu preciso fazer isso, senão enlouqueço", contou.
Livros, conferências e artigos são redigidos à mão. ``Não adianta. Não consigo raciocinar mais rápido do que escrevo. Então, para que um computador?"
Galbraith é casado com Kitty –o apelido com que se refere à sua mulher, Catherine– e tem três filhos (um diplomata, um advogado e um economista).

Folha - Muitos dizem que as mudanças políticas na ex-União Soviética, a integração européia, o Nafta (Acordo Norte-Americano de Livre Comércio) demonstram que não há outro caminho na economia que não seja o novo liberalismo. O que o sr. acha?
Galbraith - Não há dúvida de que o desenvolvimento econômico moderno, de que o desenvolvimento cultural moderno colocam os povos de diferentes países em uma maior proximidade comunitária. Eu não gosto da palavra ``globalismo" porque ela esconde mais do que revela. Mas o que sabemos é que hoje as fronteiras nacionais significam muito menos do que significavam uma geração atrás. É o resultado do comércio internacional, das corporações internacionais, das finanças internacionais, do movimento de investimentos, de mercadorias, das ações. Eles fomentaram a associação cultural e, claro, as viagens e o turismo. Todos esses ``veículos" disseram que há um grande mundo acima e além do antigo Estado nacional. Isso irá continuar. E uma das coisas sobre as quais teremos de refletir nos próximos anos é como será possível manter as funções do Estado, as funções de governo, em bases internacionais que combinem as tendências globais da economia e da cultura. Isso já está em discussão na Europa: há o reconhecimento de que terá de haver uma autoridade supranacional. Está chegando a época em que os Estados Unidos, Japão e demais países industrializados –incluindo o Brasil– terão de negociar mais e mais políticas comuns. Essa será a prioridade absoluta dos próximos 25 anos.
Folha - E quais seriam essas `políticas comuns' em um mundo economicamente integrado?
Galbraith - Deixe-me dar-lhe exemplos específicos. Os países são hoje individualmente responsáveis pela sua saúde econômica. Se os EUA reduzem sua taxa de juros e usam o gasto público para incentivar sua economia e outros países não fazem o mesmo, então alguns deles vão perder terreno no setor dos importados. Se a Holanda, a Bélgica, se em um pequeno país europeu há um sistema forte de welfare (benefícios sociais) –que custa dinheiro–, então esse país vai perder negócios para outros países que não tenham esse sistema de garantias sociais. O resultado disso é que temos de olhar para a frente, para a época em que teremos de coordenar as políticas econômicas e sociais.
Folha - O sr. dá um tom positivo à palavra ``coordenação". Mas o que se vê hoje na Europa, nos países em que há sistemas fortes de garantias sociais, é um discurso contra essas garantias. Alega-se que o Estado não tem como sustentá-las e defende-se a privatização do ensino, da saúde, da previdência...
Galbraith - Sim, há essas pessoas –também aqui nos EUA, incluindo aqueles que se colocaram contra o Nafta. Mas eles estão lutando contra uma ampla confiança internacional, muito mais poderosa do que eles e que irá controlar a situação. Você está acompanhando o meu raciocínio?
Folha - Mais ou menos. Nós estamos falando de coisas bem específicas e concretas –das garantias sociais. Veja o governo liberal na Suécia (esta entrevista foi feita antes das eleições suecas, que reconduziram o Partido Social Democrata ao poder) e o governo conservador na Inglaterra: eles querem cortar os benefícios sociais.
Galbraith - Essa é uma ventania passageira, muito passageira. O welfare state (Estado do bem-estar social) veio para ficar –não deveria haver dúvida quanto a isso. Nenhum político nos EUA sonharia em candidatar-se com uma plataforma contra o sistema de seguro social e outras compensações...
Folha - O que o sr. me diz do Health-care Bill (projeto enviado ao Congresso por Clinton, criando um sistema de saúde público gratuito; a votação foi adiada para o próximo ano)? Muitos políticos ficaram contra a proposta, que já foi modificada...
Galbraith - Como parte do crescente apoio ao sistema de bem-estar social, nós estamos tendo esse grande debate sobre a questão da saúde. Isso é parte do comprometimento absoluto com o welfare state. O welfare state está aqui para ficar. Os críticos do sistema são pessoas que vivem confortavelmente, pensam que não precisam do welfare state e por isso não querem pagar por ele.
Folha - Nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, de qualquer forma, essa discussão não existe –pelo simples fato de que não há um sistema de garantias sociais. Quando se fala da África, por exemplo...
Galbraith - Bem, esse é um caso diferente e muito triste. Mas no Brasil, por exemplo, há uma substancial estrutura de benefícios sociais. E se há uma crítica a ser feita à política econômica brasileira, é que se gasta muito esforço com a discussão dos benefícios sociais, mas pouco se enfatiza a tributação. Essa é impressão que eu sempre tive em relação ao Brasil.
Folha - Vamos voltar à questão da necessidade de políticas econômicas comuns. O sr. acha que conduzir essa ``globalização" da economia poderia ser o novo papel do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do Banco Mundial, já que tem se questionado as funções desses organismos?
Galbraith - Eu penso que o Banco Mundial tem sido uma organização útil. Eu fui, no passado, um tanto crítico em relação ao FMI, porque muito frequentemente, quando eles estavam tentando disciplinar a política econômica de um país –incluindo o Brasil– eles enfatizavam demais o corte de gastos sociais. Muito mais, por exemplo, do que o corte com os gastos militares. Nós temos vários países do Terceiro Mundo sustentando Forças Armadas sem terem inimigos. Deixe eu lhe fazer uma pergunta: quem, a propósito, irá algum dia atacar o Brasil?
Folha - O Brasil cortou significativamente seus gastos militares nos últimos anos.
Galbraith - Sim, reconheço que já houve alguns cortes nos gastos militares. Há alguns anos atrás, eu estava em uma conferência, no Rio, sentado ao lado de uma alta patente da Força Aérea Brasileira. E ele fez a mais gratificante avaliação que já ouvi sobre política militar. Ele disse o seguinte: ``Aqui no Brasil nós só precisamos ter uma Força Aérea de segunda mão, pois nós só temos inimigos de segunda mão" (risos). Sempre repito esse comentário.
Folha - Estávamos falando sobre o papel do FMI em um novo contexto econômico...
Galbraith - Eu penso que a nova coordenação da política econômica –refletindo as tendências globais da economia, das finanças, das corporações mundiais– tem de se dar em um nível mais elevado do que o FMI ou o Banco Mundial. Chegará um tempo em que as mãos dos Estados serão dadas não para se falar de comércio internacional, mas sim de uma política fiscal coordenada. Esse é um dos grandes desafios para o futuro.

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