São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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PROVOCAÇÕES DE NIETZSCHE

SCARLETT MARTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

No dia 15 de outubro, completam-se 150 anos do nascimento de Friedrich Nietzsche. Conhecido sobretudo por filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir ídolos, este pensador deixou uma obra polêmica que continua no centro do debate filosófico.
Literato ou poeta?

Na tentativa de desqualificar sua reflexão, considerou-se Nietzsche literato, poeta ou, quando muito, poeta-filósofo. É fato que suas metáforas, parábolas e aforismos exerceram uma atração tal que dificultou o contato com suas idéias. No início do século, sua influência se deu na literatura mais que em qualquer outro campo. Nele se inspiraram autores naturalistas e expressionistas menos conhecidos e escritores de renome: Stefan George, Thomas Mann e Robert Musil.
Fascinados por sua linguagem, nele redescobriram a sonoridade pura e cristalina das palavras, a correspondência exata entre nuanças de sons e sentidos, a nova perfeição da língua alemã. Abandonando o exame de seu pensamento, viram-no sobretudo como um fino estilista. Hoje, porém, a situação é outra: o encanto produzido por sua linguagem é coisa datada.

Louco ou profeta?
Com o intuito de desmerecer a filosofia de Nietzsche, perguntou-se por que levar a sério os vaticínios de um louco. É fato que, nas primeiras décadas do século, sua internação num asilo de alienados aguçou a curiosidade; o interesse despertado pela biografia atenuou a força de seu pensamento. Tudo se passava como se a crise em que mergulhara o envolvesse numa aura de mistérios, conferindo a afirmações suas o peso das proclamações de um profeta. Nos ``círculos nietzschianos" que então começavam a proliferar na Alemanha, genialidade e loucura eram termos indissociáveis.
Logo depois da crise de 1889, decidiram colocar Nietzsche ``no seu devido lugar". Dispuseram-se a fazer uma reavaliação retrospectiva das idéias à luz do enlouquecimento; atribuíram diferentes datas à manifestação dos primeiros sintomas da doença mental. Tentaram detectar os escritos redigidos sob o efeito das drogas; foram unânimes em ver nos textos de Turim a influência do cloral. Mas tais atitudes não se pautaram por motivos teóricos; elas visaram a construir e divulgar certa imagem do filósofo, que eximia de levar em conta sua reflexão.

Anti-sistemático?
Mesmo estudiosos de Nietzsche procuraram expulsá-lo da seara filosófica; concluíram que não construíra um sistema. É fato que ele não se pretende um pensador sistemático. ``Não sou limitado o bastante para um sistema", afirma, ``nem mesmo para meu sistema..." Acreditando precisar de amplos horizontes para ter grandes idéias, nega-se a encerrar o pensamento numa totalidade coesa mas fechada. Se rejeita os sistemas filosóficos, não é por apresentarem uma unidade metodológica e sim por fixarem uma dogmática.
São várias as passagens em que convida o leitor à experimentação, seja por entender que nós, humanos, não passamos de experiências ou por acreditar que não devemos nos furtar a fazer experiências com nós mesmos. Seus aforismos, tentativas renovadas de refletir sobre algumas questões, possibilitam experimentos com o próprio pensar. Recusando a alternativa entre discurso aforismático e sistema filosófico, seu pensamento apresenta-se como um sistema em aforismos. Tanto é que nele se encontram uma filosofia da natureza, uma filosofia do espírito e uma teoria do conhecimento intimamente relacionadas.

Contraditório?
Até comentadores de Nietzsche tentaram bani-lo do domínio da reflexão filosófica; sustentaram que sua obra abrigava enunciados contraditórios. É fato que o confronto com seus textos traz à tona as contradições neles presentes. Mas elas se deveriam ao estilo que adota? Em parte, talvez. Se perseguir uma idéia é abandonar várias outras pelo caminho, o que é o aforismo senão a possibilidade de perseguir uma mesma idéia a partir de diversos ângulos de visão?
Nessa medida, as contradições são necessárias, tornam-se compreensíveis e acabam por dissolver-se; surgem das diferentes perspectivas adotadas para refletir sobre a mesma problemática. Aparentes, elas devem-se ao que torna o estilo aforismático adequado ao perspectivismo, a esse modo de pensar que é a marca mesma da filosofia de Nietzsche.

Precursor do nazismo?
Por furtar-se a enfrentar seu pensamento, há quem pretexte ainda hoje os efeitos políticos desastrosos que ele teria causado. É fato que, por diferentes vias e em várias partes, Nietzsche tornou-se célebre antes de ser conhecido. Sua influência precedeu o aparecimento da obra; a difusão de suas idéias antecedeu a tradução dos livros.
Já no início do século, sua reflexão despertava interesse entre nós; deixava marcas na literatura anarquista. Também na Europa, na mesma época, ele era tido por muitos como pensador dos mais revolucionários. Poucas décadas depois, passava a ser difundido como um dos pilares do nazismo na Alemanha e era apropriado pela direita na França.
Por certo, denunciou-se a trama que ligava o nome de Nietzsche ao de Hitler. De 1935 a 1945, vários intelectuais –dentre eles: Bataille, Klossowski, Jean-Wahl, que se reuniam em torno da revista ``Acéphale"– empenharam-se em desfazer o equívoco. E, aqui, quando chegava ao auge a difamação do filósofo, Antonio Candido tomou a sua defesa. Se hoje há quem afirme que seus escritos são monstruosos, é porque não quer ver as deturpações de que foram objeto. Assim reaviva-se a imagem de Nietzsche precursor do nazismo, fruto de uma leitura superficial.

Pensador inoperante?
Por desprezar sua filosofia, há quem sustente que Nietzsche não fornece instrumentos para analisar a situação política. É fato que ele não elabora uma teoria política acabada, não se pretende teórico do poder, no sentido estrito da palavra, e tampouco se quer analista político. Mas nem por isso deixa de refletir sobre temas centrais da filosofia política e problemas candentes de sua época: as relações entre indivíduo e Estado, o 2º Reich e Bismarck, o sufrágio universal e os exércitos nacionais, os partidos políticos e a situação da imprensa, o desaparecimento das nações e a unificação da Europa.
Se a essas questões não confere tratamento especial nem atribui estatuto próprio, se não as enquadra num domínio particular do conhecimento nem delas se ocupa com metodologia específica, é porque entende que a política aparece estreitamente vinculada à moral e à religião. Intimamente ligadas, as três constituem ponto nodal em seu pensamento, integram um campo de investigação mais amplo: são objeto da crítica dos valores. Se hoje há quem assegure que, no Brasil, é inútil ler seus textos, é porque deles espera respostas imediatas para os nossos problemas. Assim divulga-se a imagem de Nietzsche desnecessário e inoperante, fruto de um modo de pensar pragmático e utilitarista.

Sem seguidores?
Para desvalorizar suas idéias, há quem argumente que Nietzsche é um fenômeno episódico da história da filosofia. É fato que, durante décadas, ele foi invocado por socialistas, nazistas e fascistas; cristãos, judeus e ateus. Estudiosos e literatos, jornalistas e políticos tiveram nele um ponto de referência, atacando ou defendendo a obra, reivindicando ou exorcizando o pensamento. Fizeram dele o defensor do irracionalismo ou o fundador de uma nova seita, guru dos tempos modernos; nele viram um cristão ressentido ou o inspirador da psicanálise; tomaram-no como um pensador de direita ou o crítico da ideologia no sentido marxista da palavra. No mais das vezes, operaram recortes arbitrários nos textos, visando a satisfazer interesses imediatos.
Mas intelectuais de qualidade, sobretudo na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos, realizaram trabalhos sérios e competentes, examinando as múltiplas questões colocadas acerca e a partir da reflexão nietzschiana. Se hoje há quem afirme que não existe um retorno a Nietzsche, é porque desconhece a gama de escritos e debates que ele continua a ensejar. Assim difunde-se a imagem de Nietzsche sem escola ou seguidores, fruto de uma abordagem precipitada e cheia de prevenção.

Aversivo ou fascinante?
Alguns não hesitam em falar do mal estar que hoje lhes provocam os escritos do filósofo; outros, da sedução que ainda exercem. Contudo, a aversão ou o fascínio, que porventura podem causar, não devem ofuscar nosso olhar. Nietzsche deseja um leitor atento –e não preconceituoso ou entusiasta. Reinscrever seu pensamento na época em que foi elaborado permite avaliar o que nele é datado e o que é extemporâneo; permite apreender o que traz as marcas de seu tempo e o que se revela inovador para refletir sobre a atualidade.
É fato que, entre nós, duas leituras acabaram por impor-se: a de Heidegger e a de Foucault. Enquanto Heidegger, com seu fino e preciso trabalho filológico, julga que a empresa nietzschiana consiste em levar a metafísica até as últimas consequências, Foucault, com a amplitude e audácia de sua visão, entende que ela reside em inaugurar novas técnicas de interpretação. Um atenua a reflexão de Nietzsche para pôr em relevo a sua própria; o outro dela se apropria enquanto caixa de ferramentas. Ambos, porém, negligenciando a sua espessura histórica, perdem sua riqueza. Se hoje há quem alerte para os perigos do contágio Nietzsche, é porque não se dispõe a enfrentar, sem intermediações, sua fala: corrosiva, mas também construtiva.
Como enfrentar a provocação Nietzsche? Para pôr-se a salvo de sua provocação, vários são os expedientes a que se recorre. A tarefa, porém, não é fácil. Pluralista, a filosofia nietzschiana propõe ao leitor não uma, mas múltiplas provocações. Mencionemos a crítica contundente dos valores, que entre nós ainda vigoram; os ataques virulentos à religião cristã e à moral do ressentimento, constitutivas de nossa maneira de pensar. Lembremos o combate à metafísica, que devasta noções consagradas pela tradição filosófica; a desconstrução da linguagem, que subverte termos comumente empregados. Assinalemos a tentativa de implodir as dicotomias, que desestabiliza nossa lógica, nosso modo habitual de raciocinar.
Contudo, a maior provocação de Nietzsche talvez consista no caráter experimental de sua reflexão. Opção filosófica, o experimentalismo descarta grande quantidade de preconceitos, aponta a falta de sentido de várias convicções nossas, desobriga-nos dos princípios vãos. Instigante, ele convida a nos questionar. Provocador, ele nos faz pensar.

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