São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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Os dois mundos de NOAM CHOMSKY

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

A pecha de paranóico foi a última tática da mídia americana para tentar desmerecer os golpes que o emérito linguista do prestigioso MIT (Massachusetts Institute of Technology) Noam Chomsky, 66, costuma desferir contra o poder nos e dos EUA.
Paralelamente às contribuições essenciais que fez à linguística desde os anos 60, e que o consagraram como um dos intelectuais mais importantes dos EUA, Chomsky desenvolveu uma ativa militância política e social, a começar por sua oposição à intervenção americana no Vietnã.
Escreveu dezenas de títulos e panfletos sobre a política interna e externa dos EUA, Israel etc. Dois de seus mais recentes livros de crítica social –``Camelot - Os Anos Kennedy" e ``Ano 501 - A Conquista Continua"– acabam de ser publicados no Brasil pela Scritta.
Chomsky concedeu esta entrevista por telefone, de Cambridge (Massachusetts, EUA), onde vive e trabalha.

Folha - Como você viu a intervenção americana no Haiti?
Noam Chomsky - Ela tem sido descrita nos EUA como um grande sucesso do governo Clinton. Conseguiram o que vinham tentando fazer desde que Aristide foi eleito em dezembro de 1990. A eleição de Aristide foi um grande choque para os EUA. Era a primeira eleição livre do Haiti e os americanos estavam certos de que Marc Bazin, o candidato que apoiavam, venceria. Ele era o representante dos bancos, dos empresários e de quem detinha a riqueza no Haiti. Ninguém estava prestando atenção ao que acontecia nas favelas e entre os camponeses. Ignoravam a existência dessa sociedade civil ativa e vibrante que acabou colocando seu próprio candidato no poder, o populista Aristide.
Desde então os EUA vinham tentando derrubá-lo. Toda a ajuda americana foi interrompida, com exceção daquela dirigida à comunidade empresarial. O National Endowment for Democracy (NED), que é um grupo bipartidário, trabalhou no apoio de alternativas para Aristide, outras organizações ou estruturas que pudessem enfraquecer a autoridade dele.
Quando foi dado o golpe, houve teoricamente um embargo, decretado pela OEA. Mas o governo Bush muito rapidamente deixou claro que não participaria seriamente do embargo. Abriram uma ``exceção", permitindo aos negócios e indústrias no Haiti com qualquer tipo de ligação com os EUA que continuassem comercializando como bem entendessem. O fluxo comercial dos EUA com o Haiti não estava muito abaixo do normal em 1992, o primeiro ano do embargo. Sob o governo Clinton, o comércio entre os dois países aumentou 50%. Incluindo até a exportação de comida do Haiti.
Em maio, a ONU também decretou um embargo, e teoricamente os EUA participavam disso, mas apenas teoricamente. O petróleo, por exemplo, continuou sendo comercializado. Novos documentos que acabam de ser revelados mostram que os governos Bush e Clinton se recusaram a punir a Texaco por violar o embargo. Isso era conhecido desde 1991. Não havia embargo real. Não havia pressões contra os ricos e militares. Os EUA apenas esperaram até que os movimentos populares tivessem sido essencialmente intimidados e destruídos. E então disseram às lideranças militares do Haiti o que tinham em mente desde o início, que tinham que deixar o poder formalmente, mantendo entretanto as forças armadas intactas.
Aristide queria fazer um corte radical nas forças armadas e os EUA recusaram a proposta e insistiram que os militares continuassem sendo treinados pelos americanos, como sempre foram, e impuseram um programa econômico do Banco Mundial, dizendo que todos os recursos estrangeiros deviam ir para o setor empresarial, para os investimentos em exportação etc., e obrigando Aristide a privatizar todos os escassos serviços sociais que tinham.
Hoje, voltamos ao ponto em que estávamos antes das eleições de 1990. O poder está nas mãos da comunidade empresarial, o exército saiu reforçado, sem qualquer mudança. A única diferença é que as organizações populares foram destruídas. Se os EUA acreditassem de fato em democracia deviam querer que Aristide terminasse seu mandato. Mas os EUA não querem isso. É uma vitória dos EUA. Conseguiram destruir a democracia no Haiti. Fizeram o mesmo na Guatemala em 54 e na República Dominicana nos anos 60.
Folha - Quais as diferenças entre a política externa de Bush e de Clinton?
Chomsky - A política externa não muda muito de governo para governo nos EUA. Reflete uma estrutura de poder mais estável. De certa maneira, o governo Clinton tem sido mais duro que Bush. No caso de Cuba, por exemplo, o governo Bush vetou uma proposta democrata em 1992 que tentava bloquear qualquer produto que tivesse uma parte produzida nos EUA de chegar a Cuba. Era uma proposta que violava a lei internacional. Significava que uma empresa sueca não poderia vender a Cuba um produto que tivesse uma parte americana. Com a pressão dos democratas, Bush foi forçado a cortar muito do comércio com Cuba, 90% eram comida, remédios e artigos de ajuda humanitária. Em outras áreas, a política externa de democratas e republicanos é mais ou menos a mesma.
Folha - Por que os democratas, que podem ser até bastante justos em questões sociais internas, se comportam como velhos imperialistas no exterior?
Chomsky - Não acho que eles sejam justos em questões internas.
Folha - Muitas vezes, com causas de direitos civis, por exemplo, eles são em geral bem mais justos que os republicanos.
Chomsky - Não é verdade. Kennedy se opunha vigorosamente ao movimento dos direitos civis. É verdade que Lyndon Johnson se comportou melhor, por várias razões. Em parte o que você diz é verdadeiro. Os republicanos são abertamente o partido do empresariado e dos ricos. Os democratas seguem em geral a mesma política, mas têm uma formação diferente. O eleitorado deles é o trabalhador, as mulheres e as minorias étnicas, o que os torna mais moderados no que diz respeito às reformas sociais. Mas no final das contas, republicanos e democradas são apenas duas facções do partido dos negócios dos Estados Unidos.
Folha - Você vê semelhanças entre Kennedy e a era Clinton?
Chomsky - Sempre há semelhanças e diferenças, mas acho que as semelhanças mais gritantes são entre Kennedy e Reagan. O governo Reagan –suspeito que conscientemente– copiou o governo Kennedy. Toda a campanha de Kennedy começou atacando Eisenhower, dizendo que ele tinha sido frouxo com o comunismo e deixado os EUA ficar atrás da URSS. A campanha de Kennedy inventou o que eles chamaram de ``desvantagem de mísseis" (``missile gap"), que os soviéticos tinham muito mais mísseis que os EUA.
Na verdade eram justamente os soviéticos que estavam em desvantagem. Ele ganhou a campanha da mesma forma que Reagan contra Carter. Quando Kennedy tomou posse, uma das primeiras coisas que fez foi promover um enorme crescimento do sistema militar, invadir Cuba e criar duas políticas para a América Latina: a Aliança para o Progresso, tentando transformar o continente num exportador agrícola, e a política de segurança, transformando a missão das forças armadas latino-americanas de uma defesa do hemisfério, uma ressaca da Segunda Guerra, para segurança interna, guerra contra a própria população. Essa foi a base para os Estados de segurança nacional que se espalharam pelo continente, a começar pelo Brasil. Reagan fez mais ou menos a mesma coisa.
Já Clinton descreve a si mesmo como um ``novo democrata", não mais um velho liberal mas um democrata guiado pelos negócios, quase a mesma coisa que um republicano moderado. Clinton vem da direita do partido democrata. Não é um republicano como Jesse Helms, mas é muito parecido com George Bush.
Folha - Por que os intelectuais americanos, no geral, se engajam em boas causas de direitos civis e parecem cegos em relação ao que se passa fora do país?
Chomsky - Não acho que estejam engajados em boas causas de direitos civis, pelo menos não a maioria. Quando o movimento de direitos civis estourou no Sul do país, os intelectuais estavam a favor, mas simplesmente porque era o que traria os EUA para o século 20. Até o empresariado era a favor do movimento dos direitos civis. O empresariado não achava que os negros deviam ser linchados. Mas se você pega o que os intelectuais

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