São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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O analfabetismo e a democracia

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

O clima ainda é de festa. Tudo transcorreu na mais perfeita ordem de norte a sul do país. Foram quase 100 milhões de eleitores que compareceram para votar e votaram de modo ordeiro. Eles aproveitaram a oportunidade para varrer do cenário político vários corruptos que se plantaram como moradores perpétuos dos nossos palácios e parlamentos há muito tempo.
A imprensa internacional enalteceu o evento na devida medida. Mandatários de vários países telefonaram e escreveram ao presidente Itamar Franco pela firme condução do processo democrático. Foram elogios merecidos. Afinal, não é fácil organizar uma eleição tão complexa em um país gigantesco como é o Brasil.
Mas, que ninguém nos ouça, demos um grande vexame nessa eleição. Refiro-me aos 25% de votos brancos e nulos. Isso não podia acontecer. Passou da conta. Foram mais de 20 milhões de votos desperdiçados.
É claro que nessa categoria há de tudo. Há o protesto, a raiva, o revide e vários outros tipos de reação bastante compreensíveis em vista do que vários políticos fizeram com o povo nos últimos tempos. Entretanto, estou preocupado com os brancos e nulos que decorreram do analfabetismo.
O Tribunal Superior Eleitoral fez um brilhante trabalho ao explicar didaticamente o porquê das duas cédulas, ensinando como votar. Mas, aquela corte partiu do pressuposto de que os telespectadores que estavam vendo as cédulas sabiam ler e escrever com certa destreza.
A realidade mostrou que o quadro é outro. A manipulação das duas cédulas e a votação em dois tempos já eram razoavelmente difíceis para os letrados. Para os analfabetos, tais manobras se apresentaram como ameaçadoras à sua imagem. Afinal, ninguém gosta de exibir as suas deficiências.
É uma reação humana. Por isso os eleitores analfabetos procuraram mostrar presteza (para não passar vergonha diante dos mesários) e fizeram de tudo para se livrar o mais rápido possível das difíceis tarefas. O modo mais fácil foi deixar tudo em branco. O segundo modo mais fácil foi assinalar erraticamente, anulando o voto.
Nesse momento, tais eleitores devem ter sentido a enorme falta que faz a educação. Penso porém que, em lugar de usarmos o voto para estimularmos o eleitor a aprender, deveríamos educá-lo para, então, o estimularmos a votar.
Lembrei-me do caso do Japão. Naquele país não existe seguro-desemprego, mas sim seguro-emprego. Os japoneses acham mais importante preservar o emprego do que acudir o desemprego. No nosso caso, não seria mais urgente educar para depois votar?
Isso não empana a beleza da festa, é claro. Mas deixa uma lição. Nesta hora em que se fala tanto em revisão das nossas leis, por que não rever a questão do voto do analfabeto e, ao mesmo tempo, firmarmos um compromisso inarredável de acabar com o analfabetismo?
Com isso, manteríamos o mesmo colégio eleitoral, melhorando, porém, a sua qualidade. E o mundo teria, então, mais motivos para aplaudir a festa de uma grande democracia.

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